Por Sara Fernandes (*)

 

Nos anos vindouros, a implementação de uma estratégia coerente de desenvolvimento para Portugal dependerá da introdução de novos mecanismos e práticas de administração e governo  a nível nacional, regional e municipal, tanto global como sectorialmente falando, suportados por plataformas digitais, tecnologias de informação e comunicação associadas. Tais mecanismos e práticas, ditas de governação electrónica (EGOV), permitirão, em particular: aumentar a eficácia e, sobretudo, a eficiência do sector público administrativo, disponibilizando melhores serviços públicos através de canais electrónicos; facilitar as reformas administrativas e institucionais na governação; envolver, de forma informada e efetiva, os cidadãos nos processos de construção política e de tomada de decisão; aumentar a eficiência, equidade, transparência, escrutínio e responsabilização da governação; suportar a persecução de objectivos políticos e institucionais na saúde, educação, economia e outros sectores; promover a inovação e desenvolvimento nos serviços de administração e governo, bem como a sua interação com o tecido socioeconómico; e, por fim, promover a eficácia dos serviços transfronteiriços, dando resposta à crescente mobilidade dos cidadãos, em especial na Europa.

Outra área  não haverá, porventura, onde a complementaridade entre as componentes do binómio de inovação tecnologia – processos se possa enunciar com tanta propriedade.

Num contexto de escassez de recursos e necessidade de racionalizar custos e optimizar o investimento público, a Governação Electrónica emerge como um domínio extremamente promissor.

Portugal possui, neste domínio, um importante capital de realização, projetos e boas práticas que o tornam particularmente bem posicionado, não apenas no contexto presente e futuro da Agenda Digital Europeia (por exemplo, no atual debate sobre a contratação público electrónica), mas também como ponto de referência e agente de inovação a nível internacional.

É indiscutível que o caminho percorrido pelo País ao longo dos anos, e não obstante os respectivos altos e baixos, permitiu que Portugal surja classificado muito satisfatoriamente em diversos indicadores internacionais. São disso exemplo o Índice de EGOV das Nações Unidas (UN E-Government Survey), publicado bianualmente desde 2003 e onde Portugal se tem mantido nos 25% mais bem classificados, o ranking da União Europeia (EU Benchmark Survey), em que Portugal tem surgido sempre em lugares de destaque, tipicamente nas três primeiras posições ou o reconhecido  destaque externo em métricas tão relevantes como os serviços centrados no cidadãos, a transparência ou os facilitadores-chave em tecnologias de informação.

Ainda assim, se os exemplos de sucesso são não apenas facilmente identificáveis, mas claramente reconhecidos pelos cidadãos (e.g. cartão do cidadãos ou o portal das finanças), a prossecução deste caminho tem fragilidades e enfrenta constantemente desafios importantes.

É neste contexto que se torna urgente pensar a Modernização Administrativa e o EGOV como um todo e não apenas como uma pasta de um ministro, sem que lhe seja dada a visibilidade ou a autonomia de um Ministério, à imagem do que acontece em muitos outros países - como a Coreia do Sul, via Presidential Committee on Government Innovation and Decentralization (CGID), ou a Colômbia, através do MinTIC.

Em bom rigor, nenhum Governo pode permanecer alheio ao espaço digital, não apenas para nele estabelecer presença e autoridade no mundo digital, mas – e sobretudo - sobretudo para melhorar os seus processos administrativos e o seu impacto na sociedade. De facto, e tal como descrito por Acemoglu e Robinson no livro “The originis of Power, Prosperity and Poverty”, é hoje claro que os “processos de governação e as dinâmicos institucionais são essenciais na explicação de diferenças no desenvolvimento dos países”.

O EGOV desempenha um papel fundamental enquanto construtor de confiança. Todos nós temos a percepção do progressivo distanciamento e desconfiança dos cidadãos face à forma como somos governados, às geometrias das funções governamentais, à falta de transparência. E, de uma forma mais minimalista, também a Administração Pública lhes parece complexa, ineficiente, morosa, compartimentada em serviços hierarquizados, organizados por princípios endógenos, e não em função da procura..

As tecnologias de informação e comunicação têm o potencial de contrabalançar este afastamento, facilitando a interação, aumentando a acessibilidade e a eficiência, sendo, por isso indutoras, de confiança.

Contudo, a aposta em EGOV e, mais genericamente, na reforma da administração Pública e na modernização administrativa é, sem dúvida, um longo caminho a ser percorrido. Se é verdade que tal caminho apresentou momentos de velocidade vertiginosa, onde o sucesso foi determinado por todos os detalhes, também é certo que somente em velocidade cruzeiro se faz estratégia, se cria conhecimento e se reúne todos os agentes catalisadores de mudança.

A crise financeira e económica, que teve início em 2008 e afectou a maioria dos países nos anos seguintes, reabriu o debate sobre o papel do Estado, como e onde deve intervir para conseguir que os objectivos de reforma e optimização de recursos sejam alcançados de forma eficaz, em particular nas administrações públicas.  A crise levou (e continua a levar) muitos governos a implementar planos de ajustamento estrutural duríssimos, para restaurar a saúde das suas finanças públicas. Acontece que, se a confiança nos governos diminuiu consideravelmente, também as crescentes expectativas dos cidadãos têm sido difíceis de acautelar com os limitados recursos dos governos.

Um dos problemas mais relevantes na situação do EGOV em Portugal é a permanência de silos diversos na Administração Pública e a ausência de uma única entidade que forneça normas e orientações integradas que sejam estudadas, acordadas e, acima de tudo, aplicadas. É preciso um entendimento comum de que não basta criar leis para que as iniciativas sejam implementadas. Ainda esta semana foi lançado um novo Portal da Saúde, que permite marcar consultas e verificar tempos de espera. A pergunta que se coloca é simples: por que razão não foi lançado no Portal do Cidadão ou porque é que este ainda se mantém como mero menú de apontadores para outros websites? Ou dito de forma mais ambiciosa: porque não se pode fazer o mesmo para a Segurança Social ou outra entidade (nacional ou local) que tenha filas de espera para os seus serviços?

A resposta a estas e outras questões reside, na minha opinião, na criação de um Government Chief Information Officer  (GCIO) em Portugal, uma figura responsável por liderar e gerir as iniciativas e os investimentos relacionados com as TIC que, efetivamente, alinhasse o uso da tecnologia com os objectivos da Administração Pública. Com a crise e com as sucessivas mudanças de orientações políticas, aliadas ao facto de termos de cumprir metas europeias nesta matéria, é cada vez mais claro que ausência de um GCIO assume um peso negativo no desenvolvimento de politicas e iniciativas de EGOV, tanto a nível nacional como local.

Para que exista um verdadeiro alinhamento entre o uso da tecnologia com os objectivos da Administração Pública é obrigatório que o GCIO seja alguém dotado de grande capacidade de liderança, para fazer adoptar mudanças adaptativas e influenciar a cultura da Administração Pública. Necessita de ser alguém com enorme capacidade de gestão e com suporte político claro, uma vez que em Portugal não é incomum verem-se alterações ao que foi feito com a chegada de um novo governo, perdendo a Administração Pública, os cidadãos e as empresas tempo e dinheiro com as constantes mudanças. É certo que todos os governantes gostam de deixar a sua marca. E muitos conseguem, pois com mais ou menos campanha de marketing as marcas vão ficando, os resultados até vão aparecendo, embora com custos elevados e muito tempo perdido.

A criação da função de CGIO obrigaria, assim, a que toda a estrutura relacionada com as TIC fosse repensada e começasse a ser encarada como um todo orgânico. Portugal é conhecido por muitos e variados serviços designados por verticais, tais como o Portal das Finanças, o Cartão do Cidadão ou o Licenciamento Zero, não sendo forte nos serviços ditos transversais, aqueles que atravessam todos os sectores do Estado. A saber, a Segurança Social, por exemplo, não sabe se o cidadão X ou Y tem uma qualquer dívida às Finanças, apesar de ambas as entidades serem Estado e, por força disso, as dívidas serem todas ao Estado, independentemente da entidade.

À imagem do que foi feito em muitos outros países do mundo, como os Estados Unidos da América, o Reino Unido, o Canadá ou a Coreia do Sul, urge criar em Portugal um CGIO. A figura do GCIO seria a pessoa responsável por liderar e gerir as iniciativas e investimentos relacionados com as TIC que efetivamente alinhem o uso da tecnologia com os objectivos das organizações públicas. Lidera, fazendo adoptar mudanças para que as pessoas alterem hábitos (fazer coisas novas e diferentes), sendo que a liderança passa muito por comunicar ideias, motivar os outros para as aceitar, apoiar a concepção. O GCIO gere, introduzindo mudanças técnicas, o que envolve melhoria (fazer as coisas melhor ou mais rapidamente), sendo que a gestão passa por planear, organizar, contratar, dirigir, coordenar, elaborar relatórios, orçamento.

Infelizmente, muitos Governos associam erradamente a função de GCIO à função de CIO, apesar das diferenças serem muitas. Em particular, um Chief Information Officer (CIO) de uma qualquer organização tem como responsabilidades desenvolver e gerir recursos de TIC no seio de uma organização; alinhar estrategicamente tais recursos tendo em conta os objectivos organizacionais; liderar a organização, de forma a adotar novos objetivos estratégicos tornados possíveis pelas TIC.

Mas se um GCIO não é um CIO, também o GCIO não é suficiente para garantir que um Estado se reforme e modernize. Associada à função de GCIO existe um vasto leque de responsabilidades, o que levará à criação de novas posições de liderança relacionadas com tecnologia, nomeadamente, Chief Technology Officer (CTO), Chief Enterprise Architect (CEA), Chief Innovation Officer (CIO), Chief Knowledge Officer (CKO), e Chief Security Officer (CSO).

O estabelecimento formal da função de GCIO em Portugal incentivaria, a meu ver, a criação de mecanismos que garantissem a implementação de estratégias de médio e longo prazo, de forma estável e combinando a efetividade das medidas e o respeito pelos processos internos, bem como pela autonomia dos serviços e/ou esferas de competência. Trata-se, em suma, de garantir a estabilidade, protegendo as grandes linhas estratégicas, cujos princípios inspiradores suscitam um consenso alargado em Portugal.

 

(*) PhD Fellow, UNU-EGOV e Investigadora HASLab INESC-TEC – Universidade do Minho