Por Diogo Duarte (*)

Cedo, as aplicações de rastreamento de contactos – contact tracing apps – apresentaram-se como uma espécie de solução tecnológica divina que havia de permitir mitigar as cadeias de contágio da COVID-19. O seu mecanismo de funcionamento recolhe a nossa admiração, e crentes de que as funcionalidades destas aplicações nos permitem alcançar um controlo eficaz da pandemia, as hesitações apostas à sua utilização foram tímidas e amenas. Porém, foram as incertezas quanto à privacidade, à protecção de dados e à segurança que desmancharam, bocado a bocado, o optimismo reinante gerado por esta messiânica solução. Desvendaram-se problemas que não haviam sido equacionados e a falta de transparência em torno destas aplicações veio gerar maior relutância em relação à sua adopção. Muitas aplicações foram colocadas em cheque mesmo ainda antes de estarem disponíveis no mercado das aplicações móveis, outras, como é o caso da aplicação alemã, conheceram críticas de tal modo intensas que obrigaram a uma mudança abrupta na sua estratégia, obrigando à passagem de um modelo centralizado para um modelo descentralizado no que respeita ao tratamento dos dados.

Com as aplicações de rastreamento de contactos a enfrentarem dificuldades várias, os passaportes imunológicos digitais apresentam-se agora como um modelo, certamente não alternativo, mas utilitário e apto, a interromper as cadeias de contágio. Igualmente materializados sob forma de uma aplicação móvel, estes passaportes possibilitam que os indivíduos que hajam sido infectados e tenham recuperado da COVID-19, possam sinalizar o seu estado de imunidade.

O objectivo primordial desta aplicação móvel passa, assim, por manter disponíveis, uma espécie de atestados de saúde online, que permitem certificar e sinalizar o estado de saúde dos indivíduos.

Como são criados e funcionam os passaportes digitais?

A criação de um passaporte imunológico digital é um processo baseado em três etapas. O primeiro momento, a que se apelida de verificação da imunidade, consiste na realização de um teste de diagnóstico ao coronavírus, teste esse que poderá realizar-se por meio de um autodiagnóstico ou por intermédio das autoridades de saúde. O objectivo essencial deste primeiro momento centra-se na detecção de imunoglobulinas no corpo humano, isto é, da existência de anticorpos produzidos pelo sistema imunológico contra o SARS-CoV-2. O pressuposto é o de que, uma vez recuperados, os indivíduos passam a ter imunidade ao vírus.

Num segundo momento, os resultados destes testes são agregados numa base de dados, na qual constam, entre outras, informações pessoais como a identificação do utilizador, o seu estado de saúde, a data e hora da realização do teste, e o resultado do mesmo.

Num terceiro e último momento, os dados recolhidos são utilizados para gerar um perfil específico do utilizador, incluindo aqui o seu grau de imunidade, o qual pode oscilar entre diferentes níveis, ou no caso dos utilizadores que não hajam sido infectados, ser mesmo inexistente.

Em termos operativos, a solução consagrada por este tipo de aplicações concentra-se num duplo procedimento, no qual, em primeiro lugar, se procede à identificação do utilizador recorrendo ao uso de dados biométricos – por exemplo, através de uma fotografia ao rosto – e, num momento subsequente, se permite o acesso às suas informações pessoais e dados de saúde em tempo real, para que o seu estado de imunidade possa ser sinalizado.

Quais são as vantagens destas soluções?

Considerando a necessidade de controlar e mitigar os focos de contágio da COVID-19 e de manter o R (valor indicativo da capacidade de reprodução do vírus) num valor abaixo de 1, bem como a necessidade de retomar e relançar a economia, o comércio e o trabalho, as vantagens dos passaportes imunológicos digitais centram-se, essencialmente, em torno dos processos de gestão e controlo do fluxo de pessoas.

Sob este prisma, atenda-se à variação do risco de contágio entre diferentes grupos de pessoas, tomando de exemplo, o acesso aos locais públicos ou de grande aglomeração. Se num determinado local público, o grupo de pessoas que nele se concentra é composto por cerca de 90% de pessoas imunes à COVID-19, o risco de contaminação será, por princípio, inferior aos grupos que são compostos por cerca de 90% de pessoas não imunes à COVID-19, caso em que o contágio teria um impacto mais substancial do que no primeiro caso. Sendo que o risco de contágio oscila em função do grupo concreto de pessoas, a utilização dos passaportes imunológicos digitais permitia uma gestão flexível no acesso aos locais públicos ou nos locais de grande aglomeração, evitando a imposição de regras e normas rígidas e estáticas. Que razão haveria para limitar o acesso a uma sala de espectáculos onde todos os espectadores desenvolveram imunidade à COVID-19?

Por outro lado, o acesso ao local de trabalho em condições de maior segurança revela-se como o grande bastião para a utilização dos passaportes imunológicos digitais. A este factor alicerça-se igualmente a necessidade de retomar a actividade laboral, sobretudo, nos sectores nos quais o teletrabalho não seja passível de ser adoptado. Efectivamente, os trabalhadores que depois de infectados hajam desenvolvido imunidade ao coronavírus dispõem de melhores condições para regressarem aos seus postos e locais de trabalho do que aqueles que, não tendo desenvolvido qualquer espécie de imunidade, são ainda bastante vulneráveis ao risco de contágio.

Além do controlo e gestão do acesso aos locais públicos, bem como da possibilidade da célere retoma da actividade laboral, outra grande vantagem da utilização prende-se com a capacidade de actualização dos passaportes digitais em tempo real. Dessa forma, ao alívio da sobrecarga burocrática das autoridades nacionais de saúde pública junta-se a possibilidade de a agregação dos dados individuais poder contribuir para uma estratégia de combate ao COVID-19 mais cirúrgica e eficaz, concedendo às autoridades nacionais uma perspectiva mais real e precisa sobre os focos e cadeias de contaminação. Sob este argumento, poder-se-ia afirmar, que à prevenção individual se some a prevenção colectiva.

Quais as desvantagens que esta solução acarreta?

Até aqui, deu-se por adquirida a ideia de que existe a possibilidade dos recuperados virem a desenvolver uma qualquer espécie de imunidade ao coronavírus. Porém, conforme refere a própria Organização Mundial de Saúde, o desenvolvimento da imunidade a um determinado agente patogénico é um processo de várias etapas que geralmente ocorre ao longo de um determinado período de tempo. Quando infectado por um vírus, o corpo reage imediatamente recorrendo à utilização de macrófagos, neutrófilos e células dendríticas que retardam o progresso do vírus e que, em alguns casos, impendem o reaparecimento dos sintomas associados à infecção viral. À primeira resposta do sistema imunitário humano, segue-se uma outra, esta mais adaptativa, na qual são produzidos anticorpos (imunoglobulinas) que irão aglutinar-se ao vírus. As células T são igualmente produzidas pelo corpo, permitindo que se reconheça e se elimine as células infectadas pelo vírus, num processo conhecido como imunidade celular. Este é o processo que consubstancia, em modo geral, a ideia de imunidade. Porém, no caso da COVID-19, não existem dados que permitam sufragar que a ideia de imunidade é uma certeza. Não sendo possível trazer esta ideia à ordem dos factos, subjaz a hipótese, mais realista, de que mesmo aqueles que hajam recuperado da COVID-19 correm o risco de serem infectados novamente.

Acresce, que uma tal solução como aquela que é aqui proposta, carece de ser complementada pela disponibilização, em larga escala, de testes de diagnóstico ao coronavírus. Ora, a capacidade dos Estados em disponibilizar este tipo de testes em grande escala é bastante questionável. Mesmo perante o cenário mais optimista, o diagnóstico ao coronavírus teria ainda que lidar com a problemática dos falsos positivos e falsos negativos. Como nos mostra o exemplo da Coreia do Sul, a imprecisão dos testes de diagnóstico e a sua ampla margem de erro contribuem largamente para – a agora, em voga, expressão – falsa sensação de segurança.

Por outro lado, os riscos para a privacidade e para a protecção de dados pessoais ampliam-se à medida que as soluções apresentadas recorrem ao tratamento de categorias de dados pessoais cada vez mais vastas, tais como sejam as categorias de dados relativos à saúde, dados biométricos e dados de geo-localização. A crítica usual é inteiramente justa: os passaportes imunológicos digitais recolhem e utilizam mais dados pessoais do que aqueles que se afiguram razoavelmente necessários para os propósitos a que se prestam. Ainda que esta perspectiva careça de todo uma outra análise detalhada, um breve compêndio das questões essenciais que a este domínio se opõem, aglomeram as exigências de mais transparência – necessária para efeitos de escrutínio público –; mais garantias – em vista da protecção dos direitos e liberdades fundamentais; e mais segurança – como forma concreta de prevenção e minimização dos riscos para a privacidade e protecção de dados pessoais.

A adesão generalizada aos passaportes imunológicos digitais comporta, em teoria, um acrescido risco para muitos outros direitos e liberdades. Concebendo a imunidade como um factor de distinção, com base no qual a sociedade se estratifica em dois grupos distintos, isto é, entre os que adquiriram imunidade e aqueles que ainda não foram infectados ou ainda não recuperaram, existem fundados receios que levem a crer que este seja um estímulo à discriminação, ao risco de exclusão social e à ampliação das vulnerabilidades socioeconómicas dos indivíduos.

De igual modo, a ideia de que a imunidade poderá ser uma característica protegida, cria um estímulo perverso à contracção do vírus, sobretudo na perspectiva de que a imunidade se pode materializar numa espécie de livre trânsito. Neste mesmo contexto, relembro aquilo que testemunhamos recentemente, quando, em estabelecimentos prisionais de outros países, vimos parte significativa dos reclusos, perante a possibilidade de uma libertação antecipada, contraírem o vírus de forma propositada. Razão nenhuma existe para se acreditar que, num espectro mais geral da sociedade, os passaportes imunológicos digitais não levariam a que se adoptassem os mesmos princípios e comportamentos, presidindo a lógica de que a infecção constitui uma espécie de vantagem sobre os demais.

Conclusão

Ultrapassado o período de confinamento, afigura-se clara a necessidade de reagir, de relançar as actividades comerciais e económicas, e de garantir a estabilização laboral. Num momento que parecem não existir soluções perfeitas, confia-se o destino às soluções que se apresentam conceptualmente capazes de solucionar – ou, pelo menos, mitigar – os problemas mais urgentes. Todavia, a estratégia nacional de combate à COVID-19 carece de ser equacionada sob diversas ópticas, das quais a utilização de ferramentas digitais é apenas mais uma a ter de ser tida em conta. Uma visão holística deve igualmente considerar as nuances das soluções tecnológicas recém-criadas, e se é certo que o tempo é de urgência, será por certo sensato recomendar que se evite cravejar novos problemas numa sociedade que atravessa um dos momentos mais difíceis das últimas décadas.

Os passaportes imunológicos digitais são uma solução que carece de ser polida, para que, com conta, peso e medida, permita que se alcance um justo equilíbrio entre aquelas que são as razões de saúde pública e os direitos e liberdades dos indivíduos. Por ora, a sua utilização parece recorrer ao uso desproporcional de dados pessoais e formular mais problemas e questões do que aqueles que pretende resolver.

(*)  Jurista, especialista em protecção de dados.

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