
Por Eduardo Santos (*)
Livro físico ou digital? O debate é frequente: há quem não abdique do cheiro do papel e quem prefira a leveza do ecrã. Mas até recentemente muitos portugueses não podiam sequer formar opinião, já que éramos o único país da União Europeia sem uma plataforma pública de empréstimo de livros electrónicos nas suas bibliotecas.
Foi só em 2025 que surgiu finalmente a BiblioLED, e a resposta do público não podia ser mais clara. Em apenas dois meses, mais de 17 mil pessoas já se registaram (sendo que o registo na plataforma implica o registo prévio presencial na sua biblioteca), e já foram emprestados mais de 21 mil livros digitais. A própria Ministra da Cultura admitiu não esperar uma adesão tão expressiva. A procura, afinal, sempre existiu. Faltava apenas o acesso. A pergunta que fica: por que razão tivemos de esperar tanto tempo?
No entanto, nem tudo são boas notícias. Pese embora a oferta de livros digitais seja diversa e tenha conteúdos de qualidade, o catálogo está ainda muito longe de rivalizar com o do papel. A razão é simples: Ao contrário do que acontece com o livro físico, que a biblioteca pode comprar livremente, os ebooks só estão acessíveis mediante licenças especiais. Ou seja, a presença de um livro digital numa biblioteca depende da boa vontade da editora que o publica. E essa boa vontade tem sido escassa.
A resistência é liderada por algumas das maiores editoras portuguesas e pela própria Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), que apelou ao boicote da plataforma pública. A maioria dos grandes grupos editoriais do país recusaram licenciar o empréstimo dos seus livros digitais pelas bibliotecas.
As justificações são vagas e tecnicamente frágeis: invoca-se a “segurança” da plataforma, sem apontar falhas específicas; refere-se termos como “pirataria” e “concorrência desleal”, como se o empréstimo bibliotecário, com compensação pela utilização, fosse comparável à partilha ilegal de ficheiros. Menciona-se uma ausência de geolocalização como se isso, por si, invalidasse todo o modelo. Enfim, pouco mais parecem que desculpas para esconder o verdadeiro cerne da questão: o facto de acharem que as bibliotecas são – nas suas palavras – um “risco de destruição do valor do mercado” da indústria do livro.
Esta lógica é profundamente errada e perigosa. Um relatório recente do Reino Unido concluiu que facilitar o empréstimo em bibliotecas ajudaria a promover a leitura, algo claramente essencial para um sector livreiro saudável. Por outro lado, um estudo realizado na Austrália demonstra que o empréstimo de livros digitais através de bibliotecas pode perfeitamente coexistir com as vendas.
Mas mais importante que argumentos económicos é o facto de que uma biblioteca que só pode oferecer títulos secundários ou menos interessantes não cumpre a sua função social de interesse público. As bibliotecas não podem ser reduzidas aos restos de catálogo das editoras, ficar restritas a editoras secundárias ou aos livros que já não têm interesse comercial. Permitir que as editoras determinem o que pode ou não constar nos catálogos digitais das bibliotecas é abdicar de um direito coletivo em favor de interesses privados. A missão das bibliotecas é garantir o acesso livre, universal e informado ao conhecimento, à cultura e à leitura. Isso implica poder disponibilizar os livros mais relevantes, inclusive os mais vendidos e populares, respeitando os seus orçamentos e os critérios técnicos dos seus profissionais.
A boa notícia é que esta não é uma batalha perdida. Em 2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no acórdão VOB, reconheceu que as bibliotecas podem disponibilizar versões digitais dos seus exemplares físicos, em empréstimo controlado. Ou seja, perante a recusa das editoras em licenciar ebooks, não restará outra alternativa que incentivar a que as bibliotecas disponibilizem os livros dessas editoras nessa modalidade.
Há quem diga que se o conceito de biblioteca fosse inventado hoje, nunca passaria: seria visto como pirataria institucionalizada. Não há melhor exemplo disso mesmo que a atitude do sector livreiro perante a disponibilização de ebooks em bibliotecas. Mas essa visão ignora tudo o que as bibliotecas representam: liberdade de acesso ao conhecimento, coesão social, desenvolvimento cívico e formação de leitores.
Enquanto as editoras bloqueiam o acesso digital, o mercado do livro está em franco crescimento. As vendas aumentaram 9% só em 2024, com destaque para o público jovem, e acumulam 30% de crescimento nos últimos cinco anos. Não há crise. Há, sim, um setor editorial mais robusto, em grande parte graças às bibliotecas que formaram os seus leitores, além de contribuírem para a expansão do sector comprando milhares de livros por ano.
Se permitirmos que a função social das bibliotecas seja subjugada pelos interesses comerciais imediatos de algumas editoras, estaremos a assistir ao fim da ideia de biblioteca pública como a conhecemos. No mundo físico, nenhuma editora pode impedir que um livro comprado entre numa biblioteca. No mundo digital, o mesmo princípio deve ser garantido. Não é aceitável que só se possa disponibilizar o que as editoras aceitam, quando aceitam, e se aceitarem.
A questão não é tecnológica nem comercial. É política e cultural. Quando se impede o acesso a livros por motivos comerciais, não se está apenas a proteger lucros, está-se a limitar o direito à leitura. E isso, sim, deveria ser o verdadeiro debate.
É caso para perguntar: Quem tem medo das bibliotecas?
(*) Coordenador Nacional da Knowledge Rights 21.
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