A apresentação do novo headset foi a “mais uma coisa” que a Apple habitualmente guarda para o fim das suas apresentações. Não era propriamente uma surpresa, até porque já era esperada há meses, mas a materialização do conceito, combinando o hardware dos óculos Vision Pro com a plataforma de software visionOS, e aliando aos conteúdos da Apple e da Disney e à experiência de utilização, tiveram o efeito “Uau” que a Apple tem conseguido. E por isso não é de estranhar que seja considerado o maior anúncio da última década.
Mas será este o principio da massificação da realidade imersiva, com a AR e VR a chegar ao consumidor depois de várias tentativas da Microsoft, Samsung, Google, Meta com a Oculus, Magic Leap, TCL, LG, OPPO e ByteDance? Os vários especialistas e analistas contactados pelo SAPO TEK mostram sinais positivos mas avisam que ainda há várias questões a responder e tempo de maturação antes de colocar estes dispositivos na mão e nos olhos da maioria dos utilizadores, e o preço é um dos fatores chave, embora não o único.
Diferente do anúncio dos primeiros óculos de realidade virtual da Samsung, no MWC de Barcelona, em 2016, onde os mais de 5 mil espectadores estavam a usar os Gear VR na apresentação, o que permitiu a Mark Zuckerberg fazer uma espetacular e sorrateira entrada na sala a apresentação da Apple foi tradicional, projetada num ecrã.
A possibilidade de experimentar os Vision Pro foi reservada a poucos eleitos que acompanharam o anúncio na sede da Apple e com direito a uma demonstração privada, como Francisco Jerónimo, vice-presidente da IDC para a área de Data & Analytics - Devices na Europa, que contou ao SAPO TEK a sua experiência.
“Já testei o produto e é simplesmente fenomenal. A qualidade da imagem é fantástica e o interface do utilizador é muito simples. Tudo funciona bem, do tracking dos olhos, ao reconhecimento dos gestos da mão para scroll, e só foi preciso uma explicação rápida para começar a usar”, explica Francisco Jerónimo, que destaca que “nunca tinha visto um 3D assim”.
A experiência foi controlada, mas esteve ao nível do que a Apple mostrou e palco, com vários casos de aplicação e também imagens em 3D de dinossauros e do filme Avatar. Francisco Jerónimo ficou também impressionado com o Face Time e com a imagem replicada em 3D. “Funciona muito bem, uma pessoa quase se esquece que está a ver uma imagem virtual, com movimentos da cara, sem delay na expressão e na voz”.
Veja as imagens do Vision VR
Depois do anúncio não faltam comentários à tecnologia e ao conceito, entre críticas e memes, mas é difícil encontrar quem realmente diga mal depois de experimentar os Vision Pro, apesar de algumas críticas ao preço e algumas dúvidas da comunidade de developers que já trabalham nos ecossistemas existentes.
Para o analista, que tem acompanhado o mercado de equipamentos de realidade virtual e aumentada, este “é o maior lançamento e com potencial de tão disruptivo como o iPhone. A Apple está a apostar na próxima geração de interface de utilizador. Tal como toda a gente mudou para smartphones, tablets e portáteis, o Vision Pro tem potencial de levar a uma mudança para um interface com mobilidade, o que antes não tínhamos”, sublinha.
Apesar de já existirem vários equipamentos no mercado, com a Meta a apostar Quest que integrou da Oculus, e a Microsoft continuar a investir nos HoloLens, Francisco Jerónimo, que já testou os diferentes modelos, garante que a experiência da Apple com o Vision Pro está muito à frente.
“Se este conceito for associado à Inteligência Artificial e 5G ou 6G, vai revolucionar o mercado”, explica, mas admite que ainda é cedo para fazer projeções e perceber se conteúdo está preparado e se vai haver adoção dos utilizadores. Embora seja um conceito novo, que precisa de adaptação e de casos de aplicação e conteúdos que justifiquem o investimento, o analista acredita que a adoção pode ser mais rápida porque o ciclo da tecnologia está a acelerar, mas que para já o preço de 3.500 euros vai manter o produto limitado a um nicho de utilizadores “prossumers” que são profissionais e consumidores, e empresas ou developers que querem explorar o conceito.
Veja o vídeo da Apple que mostra o potencial do Vision Pro
O bom, o mau e o que ainda não se sabe
A apresentação da Apple no WWDC 23 foi acompanhada por interesse pela comunidade de desenvolvimento em realidade virtual e aumentada em todo o mundo e o SAPO TEK falou com Luis Bravo Martins e Anesio Neto para perceber as suas impressões do anúncio. Há ainda detalhes técnicos que falta apurar, e de integração, o que não retira a importância do momento, e a curiosidade de nunca se ter falado em metaverso ou em Inteligência Artificial, palavras proibidas na apresentação.
“Foi um momento importante essencialmente porque marcou a entrada da maior empresa tecnológica do mundo no mercado dos equipamentos imersivos, com um produto que parece muito polido e que decerto terá mais modelos (e preços) no futuro”, sublinha Luis Bravo Martins.
“Pessoalmente, fiquei surpreso pela Apple ir nesse sentido e apontar diretamente ao mercado do consumidor, ao invés do de B2B”, explica o CMO da KIT-AR e co-author do livro "Metaversed - See Beyond the Hype", que tem uma longa experiência na área das experiências imersivas e trabalho feito em projetos em Portugal. O facto de muitos dos casos de utilização mostrados na apresentação serem serviços com que os utilizadores já estão familiarizados, e que conhecem de outros dispositivos da Apple, como a Apple TV, por exemplo, “facilita a percepção do valor”.
O especialista destaca o interface que parece muito fácil e a parceria com a Disney, que trará muito conteúdo, assim como a App Store. Ainda assim, muitas questões ficam no ar, com aquilo que refere ser um teaser rápido para um produto que será de facto lançado no próximo ano, “e ao preço de 3.499 dólares, não teremos de certeza uma massificação do VR”.
Também Anesio Neto, XR Business Expert na Siemens e investigador nas áreas imersivas desde 2017, da associação portuguesa de VR/AR (VRARA), admite que depois de “anos de espera por um headset da Apple, finalmente este ano conhecemos o Apple Vision Pro”. Como destaque aponta o posicionamento diferente da maioria dos headsets existentes no mercado e a base de aplicações já disponíveis, as apps existentes nas lojas de aplicativos para iPhone e iPad, que vão estar disponíveis desde o dia do lançamento do Vision Pro.
A ligação ao ecossistema da Apple, com a continuidade para quem já tem um MacBook, um iPhone, iPad ou AirPod, e a aposta em gaming, com funcionalidades que parecem estar a caminho, assim como a Meta fez com os Quests no passado, reforçam o uso pessoal e para lazer.
“O hardware em si é muito interessante, resultado de cerca de 5.000 patentes, conforme apresentado, com os novos processadores da Apple, que trazem potência no processamento, um conjunto ótico com grande capacidade gráfica e compacto, proporcionarão uma melhor experiência sem a necessidade de controlos como os outros headsets, apenas com o uso de hand gestures e o próprio movimento dos olhos”, refere Anesio Neto, explicando que “apesar de aparecer a todo momento conectado a um cabo, em determinado momento, explica-se que o uso do cabo serve para conexão de um power bank para estender o uso”, que para já será de apenas duas horas com a bateria interna.
Os detalhes do hardware partilhados já pela Apple, com o recurso a um sistema dual chip com o novo chip R1, que consegue gerir as imagens das câmaras, em conjunto com o chip M2, reduzindo a latência, fazem parte dos pontos fortes do Vision Pro. Os displays micro-OLED contam com 23 milhões de pixels nos dois ecrãs e há ainda 12 câmaras, cinco sensores e seis microfones a contribuir para a informação de contexto.
O design do headset, semelhantes a óculos de mergulho, tem sido elogiado e criticado, com muitos memes a surgirem desta opção e da utilização de um ecrã exterior que simula os olhos do utilizador, recorrendo a um avatar personalizado que também é usado nas comunicações da Face time.
Veja os memes que estão a circular sobre o Vision Pro da Apple
Na prática os óculos são opacos como outros headsets no mercado, mas o utilizador pode ver o que se passa à sua volta através das imagens das câmaras exteriores que são replicadas nos dois ecrãs interiores.
Francisco Jerónimo admite que esta opção que a Apple introduziu para facilitar a interação social, permitindo a uma pessoa interagir com os colegas e família sem tirar os óculos, se torna estranha. “Se alguém se aproxima vemos o avatar dessa pessoa, que é realista, mas será estranho não estar a olhar realmente para ela, e também que o que ela vê é uma versão virtual dos meus olhos”, explica.
A situação pode tornar-se mais desconfortável em família ou numa reunião. “Não vejo que a nossa geração continue a falar com outra pessoa cara a cara sem tirar os óculos”, mas admite que esse comportamento possa ser diferente entre os mais novos, que facilmente dispensam este contacto mais pessoal.
O analista refere ainda o peso do equipamento como um fator negativo. “Pela utilização dos materiais pensei que seria mais leve, mas tem um peso semelhante a outros headsets”, sublinha, dizendo que isso torna menos confortável a utilização. “Não vejo uma utilização por 4 a 5 horas”, refere.
Para Francisco Jerónimo há ainda outra questão a esclarecer, que é o impacto na visão de ter os ecrãs mesmo próximos dos olhos durante tanto tempo. “Ainda ninguém conseguiu explicar que impacto é que isso poderá ter”, afirma, dizendo que tudo indica que a Apple vai limitar a venda de aparelhos a pessoas que tenham algumas condições médicas especiais, como epilepsia.
Luis Bravo Martins aponta ainda a questão da privacidade como um elemento relevante. “Os óculos são dual-chip e um dos chips está dedicado ao processamento dos dados de sensores”, lembra o especialista, que cita um testemunho de um investigador que trabalhou 10 anos na Apple, desenvolvendo aquilo que são as bases do Vision Pro sobre a forma como os dados são utilizados para prever o que o utilizador vai fazer e onde vai clicar.
“É essencialmente pelas possibilidades de neuromarketing alavancadas pelos óculos que acredito que nós, profissionais de marketing, vamos ser essenciais a definir se o Metaverso será uma utopia ou uma distopia”, diz Luis Bravo Martins
Mesmo assim, Anesio Neto diz que é “interessante a Apple ter falado no fim da apresentação sobre data privacy e safety”, lembrando que são dois pontos onde a Quest(Meta) e a Pico(ByteDance), dois dos maiores players do mercado, falham.
O preço é uma barreira ou uma salvaguarda?
Uma das maiores críticas ao lançamento dos Vision Pro é o preço, fixado em 3.500 dólares, um valor considerado demasiado alto para o mercado de consumo. Tim Cook ainda explicou em palco que este equipamento substitui vários outros dispositivos, como um televisor, ou ecrãs para o computador, e que introduz uma nova experiência de trabalho e lazer.
O valor é quase três vezes superior ao dos Quest Pro, embora mais próximo dos HoloLens da Microsoft que têm continuado acima de 2 mil euros.
Francisco Jerónimo defende que apesar da Apple estar a apostar mais no segmento de consumo tem consciência que este “não é produto que grande maioria dos consumidores vão comprar”, admitindo que numa primeira fase se destina a um nicho de utilizadores, developers e empresas, mas que mostra o potencial da tecnologia.
“A grande aposta [na massificação] é na próxima geração de equipamentos que vai lançar”, defende Francisco Jerónimo.
“O preço não é a grande questão. Vai haver versão mais barata nos próximos dois anos e no fundo o que importa é mostrar capacidade, e isso a Apple demonstrou de forma excecional”, afirma Francisco Jerónimo.
Na prática a Apple vai agora testar o mercado, e a capacidade de procura, mas também o interesse dos developers e dos consumidores, e depois ajustar a estratégia. Mas Anesio Neo sublinha que tem a vantagem de ter já uma coisa que “a Meta (Facebook na altura do lançamento dos primeiros headsets) não tinha: uma base enorme de desenvolvedores e de conteúdo pronto a usar, o que já é um diferencial”.
“O custo é muito elevado para o que foi apresentado mas ainda assim acredito que terão boas vendas”, justifica Anesio Neto
A primeira fornada dos óculos Vision Pro deve chegar às lojas nos Estados Unidos no início do próximo ano, provavelmente durante o primeiro trimestre, alargando-se depois a outros mercados de forma progressiva. Francisco Jerónimo estima que as vendas possam rondar os 200 a 300 mil, especialmente para developers, empresas e um nicho de early adopters, e dá mais créditos à segunda versão, que acredita que pode chegar às lojas em 2025, a metade do preço.
Os vários fabricantes com produtos de realidade imersiva já no mercado têm ainda números de vendas tímidas, com cerca de 300 mil em realidade aumentada e 8 a 10 milhões por ano em realidade virtual, e os vários especialistas defendem que Apple tem a capacidade para fazer com que estes números cresçam, mas não de forma explosiva, pelo menos numa primeira fase.
“Ainda é cedo para dizer que o mercado de realidade imersiva vai explodir”, afirma Francisco Jerónimo, embora defenda que é certo que a Apple vai dominar o segmento premium.
“Vamos assistir nos próximos anos a um crescimento significativo, mas não esperamos que vá vender tanto como o iPhone. Vai ser um produto complementar, provavelmente vendido em bundle com conteúdo ou outros produtos”, justifica.
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