O recente caso da jovem de Leiria, que desapareceu de casa dos pais depois de manter contactos com um homem de 48 anos através de mensagens num jogo online, voltou a trazer para as manchetes noticiosas os riscos de comportamentos excessivos e de contactos com estranhos na Internet. Luana tinha 16 anos quando desapareceu e já estava sinalizada por ter uma dependência de jogos online, mas este é um caso que os especialistas dizem que pode ser um alerta, que ainda assim não deve ser generalizado para todos os adolescentes.
Desligar a ficha da internet, bloquear acesso às redes sociais e controlar todas as comunicações não é uma opção numa altura em que a vida é cada vez mais digital, e dependente das tecnologias para as coisas mais básicas. A necessidade de encontrar estratégias que garantam maior segurança online é um dos desafios da sociedade, e a procura de soluções passa pelo reforço da responsabilidade das plataformas, com legislação como a Lei dos Serviços Digitais e outra regulamentação de proteção de dados e cibercrime, mas também pela sensibilização para a adoção de comportamentos seguros e a formação.
Um estudo hoje divulgado revela que os jovens passam cada vez mais tempo online, sacrificando o tempo da família, do sono e do exercício, e que admitem que os pais não estão a impor regras rígidas relativamente ao uso da internet e que as regras são feitas por eles. Um dado que Ivone Patrão, coordenadora do estudo disse constituir "um alerta importante para os pais".
"Para jogarmos um jogo de futebol precisamos de balizas e aqui também precisamos de balizas. Precisamos de regras bem definidas relativamente ao sono, às horas das refeições, aos conteúdos, aos tempos online", defendeu, frisando que "não há uma regra uniforme para todos".
É fácil reconhecer que o acesso à internet e às plataformas de redes sociais e de jogos tem associados riscos para os mais jovens, que devem ser explicados com informação e orientação clara por parte dos pais e educadores, através de canais de comunicação mais próximos e com a disponibilidade de apoio para quando surgem dúvidas e problemas. E com mais literacia digital.
Estas orientações fazem parte das estratégias definidas no apoio aos mais jovens, mas muitos dos conselhos sobre como proteger-se online são aplicáveis a todas as pessoas que usam a internet, e que devem ser reforçados no Dia da Internet mais Segura que hoje se assinala.
Burlas românticas, sextortion e fraude do “falso familiar
O cibercrime tem crescido de forma exponencial, multiplicando-se a pornografia de menores, o phishing, ransomware, sextortion, crimes relacionadas com meios de pagamento eletrónico e as burlas românticas. Os números de pedidos de ajuda e denúncias à Linha Internet Segura e a autoridades como a PSP e PJ mostram uma explosão dos casos, e tudo indica que esta é apenas “uma gota no oceano” já que muitas situações podem não chegar a ser denunciadas.
“A nível nacional as burlas informáticas e nas comunicações entre 2018 e 2020 mais do que duplicaram (9.783 – 19.855) e estes são os casos denunciados às autoridades, mas acreditamos que os números sejam muito superiores, devido às cifras negras. Em 2021 – ultrapassámos as 21 mil (21.374), dados oficiais do RASI", explicou Sónia Martins, do Núcleo de Cibercriminalidade da Polícia de Segurança Pública (PSP) em entrevista ao SAPO TEK.
Os casos de burla do falso familiar, conhecido por “Olá Pai Olá Mãe”, destacam-se pelo elevado número de ocorrências diárias e registam-se em todo o território nacional, com especial incidência nas zonas urbanas de maior densidade populacional.
Sónia Martins lembra que, nestes casos, os suspeitos, através de mensagem escrita numa aplicação de comunicação, maioritariamente WhatsApp, remetida de um número de contato identificável, apresentam-se como familiares muito próximo da potencial vítima, seguindo usualmente uma de duas variantes de abordagem, referindo que o telemóvel se avariou ou perdeu e que este é o único contacto que têm, ou dizendo que mudaram de número.
“A partir desta abordagem inicial, o diálogo através de mensagens é continuado, para dar credibilidade à história, considerando e confirmando que se tratará de uma relação familiar próxima e estruturada, até chegar ao propósito pretendido, solicitar a transferência ou envio por intermédio de plataforma de uma quantia monetária, por exemplo, para pagamento da reparação ou nova aquisição de telemóvel ou pedido de “empréstimo” para satisfazer outra despesa urgente”, refere a agente do núcleo de cibercriminalidade.
Só a PSP registou, no último ano, 1.244 denúncias, das quais 1.205 desde o início de outubro, com uma média de 10 denúncias por dia, num valor global de burlas que ultrapassa o milhão de euros - relativamente à burla “Olá Pai Olá Mãe”. Mas tal como noutros crimes com recurso a meios informáticos, é possível que este número não corresponda à totalidade das perdas reais.
As burlas e fraudes que envolvem extorsão financeira fazem também parte dos crimes tipificados pela Linha Internet Segura, gerida atualmente pela APAV em coordenação com o Centro Internet Segura. “Desde 2019, ano em que a APAV está com a Linha Internet Segura, verificamos que as situações de cibercrime têm uma tendência crescente”, detalha Ricardo Estrela, indicando que em 2022 houve mais de 1200 pedidos de apoio e denúncia, enquanto na dimensão de hotline, de conteúdos ilegais online, foram reportados 810 casos.
Esta é uma evolução preocupante, e o coordenador da Linha Internet Segura destaca sobretudo os conteúdos de abuso sexual de crianças online, tendo sido recebidos 611 reports de imagens e vídeos partilhados na “clear web” mas também na “dark web”.
“Estamos a viver um período em que existe uma grande disseminação e partilha de conteúdos de abuso sexual. São partilhadas fotografias e vídeos de forma demasiado fácil face à gravidade do abuso”, alerta Ricardo Estrela, referindo também a partilha em grupos fechados de serviços de mensagem como o Telegram.
Nestes casos a abordagem é feita em conjunto com a Polícia Judiciária ou através das redes internacionais com as quais a Linha Internet Segura tem parcerias para bloquear o acesso aos sites ou imagens partilhadas, mas nem sempre com sucesso, em especial no Telegram. “Existem formulários para reportar e denunciar mas a experiência é que nunca temos feedback”, justifica.
Os conteúdos de abuso sexual de menores acabam por ser os mais chocantes, mesmo para quem trabalha nesta área. “Lidamos com o pior do pior que se pode encontrar online e volta e meia conseguimos ser surpreendidos com o grau de crueldade que certas situações trazem”, admite Ricardo Estrela.
Mas não são só casos de jovens e crianças que chegam à Linha Internet Segura e o coordenador da Linha detalha ainda como cada vez mais frequentes as burlas românticas, que têm afetado vítimas com idade acima dos 35 anos, geralmente mulheres, que se envolvem com indivíduos que fingem ter interesse romântico e acabam envolvidas num esquema de extorsão financeira.
“São processos que têm de ser geridos com muita cautela, as vítimas não querem divulgar a situação junto das famílias e muitas vezes contraem créditos para pagar as quantias pedidas”, justifica.
Ricardo Estrela indica que estes casos surgem de redes de crime organizados, com pessoas a atuar a partir de países africanos, como a Nigéria, e que passam por situações de sextortion, mas que as vítimas podem procurar ajuda de forma anónima e não deixar a situação evoluir para estágios mais avançados.
Comportamentos mais seguros e mais sensibilização
As recomendações para proteger as contas das redes sociais, não aceitar como amigos pessoas desconhecidas e usar métodos de autenticação de dois fatores fazem parte das recomendações básicas, mas o certo é que nem sempre são suficientes. Do lado das plataformas há um trabalho a fazer para agirem mais rapidamente face a situações reportadas de perfis falsos e conteúdos ilegais, e a expectativa é que também a tecnologia de inteligência artificial possa ajudar a reforçar os sistemas de proteção de ataques de phishing e ransomware.
Na base está, como sempre, maior nível de literacia digital e de cibersegurança, com cuidados básicos de mudança regular de passwords e atualização do software, como destaca o Secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa.
Mário Campolargo lembra que a adoção de comportamentos seguros na Internet, é uma necessidade cada vez mais premente tendo em conta o lugar central que o digital ocupa na nossa vida quotidiana. Em entrevista ao SAPO TEK, admite é necessário continuar a investir em ações de formação e literacia digital, mais básica mas também mais avançada.
"A internet e as tecnologias digitais são uma excelente oportunidade para simplificar e facilitar as nossas vidas, diminuindo distâncias, tanto físicas como temporais. Mas podem também ser a origem de vários riscos, muitos dos quais difíceis de antecipar”, refere Mário Campolargo
Um estudo da Microsoft indica que no último ano 69% dos inquiridos experimentaram pelo menos um risco e 42% das pessoas tornaram-se menos confiantes na utilização da internet. Nos principais riscos identificados, destacam-se a desinformação (51%); riscos pessoais (42%), como discurso de ódio, cyberbullying, assédio, abuso e ameaças de violência e conteúdo violento (39%), como violência gráfica, conteúdo terrorista e extremista.
O sentimento de insegurança faz com que as pessoas procurem também mais formação e informação sobre o cibercrime. Isabel Baptista, Coordenadora do Departamento de Desenvolvimento e Inovação do Centro Nacional de Cibersegurança, indica que “genericamente encontramo-nos mais preparados [para responder ao cibercrime]. Se olharmos para a sensibilização, nomeadamente para os cursos de e-learning que o CNCS desenvolve, podemos verificar que existe uma procura continua a constante por este tipo de formação, quer ao nível das empresas quer do cidadão, o que resulta da maior preocupação das pessoas para estas temáticas ligadas à Cibersegurança”.
Mesmo assim, este é um trabalho que não pode parar. “A sensibilização é um tema que deve ser sempre trabalhado e cada vez mais em profundidade, de modo continuado. Para isso, torna-se essencial o aumento da formação disponível e de conteúdos, introduzindo estas temáticas ligadas à Cibersegurança nas escolas e nos conteúdos programáticos do ensino secundário, de forma harmonizada e constante, para que que os jovens se possam preparar para esta área, adquirindo conhecimentos básicos”, defende Isabel Baptista.
Existem vários cursos online, com níveis de formação mais básico ou mais avançado, e podem o SAPO TEK reuniu um conjunto de cinco formações gratuitas para aprender o essencial e navegar na Internet de forma mais segura.
Legislação assume medidas mais duras para as plataformas
Na Europa a legislação de proteção dos menores tem assumido medidas mais duras, colocando nas plataformas digitais maior responsabilidade para proteger os utilizadores, com moderação de conteúdos, mais rapidez na eliminação de conteúdos online ilegais e identificação de comportamentos desviantes.
A Lei dos Serviços Digitais (DSA na sigla em inglês) é uma das novas regulamentações que pode trazer maior reforço da segurança online, e a expectativa é que ajudem a reforçar também a transparência sobre a forma como são geridos os conteúdos, para além de outras matérias.
"As grandes empresas tecnológicas que usem os nossos dados vão ser obrigadas a fazer relatórios de transparência com mais regularidade [...] vamos perceber as maiores ameaças e em concreto os mecanismos que as empresas estão a utilizar para mitigar as situações que falámos e as ameaças que todos os dias ocorrem na plataforma. Vai ser muito importante", sublinha Ricardo Estrela
No Reino Unido as autoridades estão também a reforçar as medidas. O país prepara-se para avançar com nova legislação na área da segurança online, que prevê penas de prisão para os responsáveis máximos de empresas de internet, como as redes sociais. O texto vai prever a responsabilização criminal dos líderes cujas empresas falhem sucessivamente as suas obrigações de proteção dos menores que navegam online.
Os algoritmos e a Inteligência Artificial são também vistos como aliados no combate ao número crescente de cibercrimes, e Ricardo Estrela confessa a sua expectativa. Perante o crescimento de casos de burla, com recurso à engenharia social e criação de perfis falsos, o coordenador da Linha Internet Segura defende que "tem de haver mecanismos de filtro também com inteligência artificial para ajudar".
Comunicar de forma mais próxima dos jovens
Cristina Ponte, professora catedrática que coordena a equipa portuguesa na rede europeia EU Kids Online desde o seu início, acredita que a sensibilização dos mais jovens para a segurança online é um trabalho que deve ser desenvolvido de forma contínua, em especial junto dos mais novos e numa linguagem próxima que possa ser facilmente compreendida.
“A promoção da literacia digital é uma tarefa constante e deve envolver ativamente crianças e jovens, considerando os seus interesses, experiências e culturas”, justifica Cristina Ponte.
A investigadora realça que esta é uma das razões que levaram um grupo de investigadores, doutorandos e comunicadores de ciência da Universidade Nova a lançar a plataforma Crianças e Adolescentes Online (CriA.On), anunciada hoje.
A disponibilidade de serviços onde é possível procurar ajuda ou denunciar uma situação de forma anónima e segura é também vista como relevante por Ricardo Estrela, coordenador da Linha Internet Segura, que no último ano recebeu mais de 1.230 contactos, entre atendimento e denúncias.
Para além da linha telefónica, a Associação de Proteção à Vítima (APAV) tem outros canais de contacto pelo Facebook, Instagram e Skype, centralizando os pedidos que recebe por estas redes e encaminhando os que estão ligados a cibercrime para a unidade da Linha Internet Segura. Mas a ideia é evoluir para outras formas de contacto.
“Esta é uma das grandes prioridades, mesmo a nível europeu na estratégia de Better Internet for Kids, que quer maior proximidade com as crianças e jovens”, explica Ricardo Estrela.
“Queremos criar uma forma de nos reinventar, nas ações de sensibilização, formato e conteúdo mas também nos mecanismos de contacto que existem e que têm de ser mais adaptado às crianças e jovens. Se preferem falar por chat e não usam telefone, sabemos que o contacto telefónico não vai ser meio privilegiado... é preciso criar alternativas”, defende, sublinhando que o mais importante é que sintam que estão à vontade para comunicar com a linha e que estão seguros.
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