No final do ano passado Portugal contava com 4.073 startups que geravam um volume de negócios de 2,3 mil milhões de euros. Só das exportações vinham 1,3 mil milhões de euros, de acordo com um estudo da Startup Portugal, IDC e Informa D&B. A pesquisa apurou que 35% destas startups são exportadoras, um número que fica muito acima da média da economia portuguesa, onde esta condição se aplica a 11% das empresas, e que mais de metade do seu volume de negócios era realizado fora de Portugal. As empresas contabilizadas neste universo serão responsáveis por 25 mil empregos e mais de 70% nasceram nos últimos cinco anos A grande maioria (84%) são projetos de conhecimento intensivo e alta tecnologia.
A saúde é um dos sectores onde encaixam parte destes novos projetos: cerca de 8,45%, segundo as contas da Dealroom, e cerca de 15% dos projetos já financiados pela Portugal Ventures, lembra a Startup Portugal que reconhece “um crescente dinamismo e relevância das startups no sector da saúde em Portugal”.
“É particularmente encorajador ver o surgimento de unicórnios como a Sword Health, demonstrando não apenas o potencial do sector, mas também a capacidade das startups portuguesas de se destacarem globalmente”, sublinha o organismo que tem a cargo a Estratégia Nacional para o Empreendedorismo, apontando outros projetos que podem em breve fazer um caminho idêntico.
“Existem vários projetos promissores, como Tonic App, knok, Peekmed, mycareforce, iLof, Hopecare, Nevaro, Clynx, UpHill, entre outros, que estão a surgir como potenciais unicórnios no futuro, impulsionando ainda mais a inovação e o crescimento do sector”.
Das várias áreas às quais os projetos de startups portuguesas têm trazido inovação para o sector, a Startup Portugal destaca a da saúde digital, nomeadamente nos domínios da telemedicina e na monitorização remota de pacientes. “Observamos um aumento da oferta de serviços hospitalares ao domicílio e um crescente envolvimento dos municípios na gestão da saúde da sua população (como os idosos com doenças crónicas, por exemplo) o que leva a que estas vertentes tenham adquirido uma importância crescente”.
Ricardo Vieira-Pires, Health Community Lead do EIT Health InnoStars Portugal complementa esta nota. “A digitalização do sector da saúde está em rápida evolução com o desenvolvimento de dispositivos médicos cada vez mais avançados e terapêuticas digitais inovadoras. Isso inclui dispositivos de monitorização remota dos pacientes, aplicativos de saúde, wearables, e até mesmo terapias digitais baseadas em software”.
Paralelamente, o uso secundário de dados de saúde para desenvolvimento de soluções personalizadas “é um tópico de elevado interesse por parte da indústria, startups, academia e dos próprios hospitais”, acrescenta o responsável. A disponibilidade cada vez maior desses dados, por força da digitalização, está a impulsionar também muitos dos novos projetos que Portugal tem visto nascer e crescer nesta área.
Em foco estão soluções que utilizam algoritmos avançados e inteligência artificial para promover a prestação de cuidados de saúde personalizados e a gestão mais eficaz dos percursos terapêuticos. São soluções que envolvem a análise de grandes conjuntos de dados clínicos e de saúde para identificar padrões, prever tendências ou fornecer insights que apoiam decisões médicas.
“Têm particular impacto num contexto de limitações orçamentais e de recursos do SNS, tendo em conta que permitem uma rápida mudança para um mindset de Value Based Healthcare, isto é, os hospitais pagam pelos resultados positivos junto dos doentes e não pela quantidade de terapêutica aplicada” sublinha Ricardo Vieira-Pires.
A Dioscope, de quem vamos falar mais em detalhe neste especial, é uma das startups a trabalhar nesta área, com a sua plataforma de formação e apoio à decisão, feita por médicos para médicos. “O sistema de apoio à decisão clínica da dioscope tem hoje mais de 100 protocolos clínicos de base, de 18 especialidades, usados por médicos de mais de 30 hospitais e 40 centros de saúde”, revela o dermatologista e fundador do projeto Tomás Pessoa e Costa.
Ritmo de novos projetos abrandou
No entanto, também se verifica que o número de novos projetos nesta área da saúde não tem crescido ao mesmo ritmo que noutros sectores. “O que tem sido notável é o amadurecimento dos projetos existentes, que têm crescido em dimensão e estrutura, elevando assim a importância dessa indústria no nosso ecossistema empreendedor”, como destaca a Startup Portugal.
Ainda de acordo com os dados da Dealroom, o número de startups da área da saúde lançadas em 2023 ficou apenas a 59% do número de projetos criados em 2018. Já o número de colaboradores das startups do sector multiplicou-se por oito no mesmo período e o valor de mercado das startups de saúde de origem portuguesa também teve um crescimento substancial, passando de 330 milhões de euros em 2018 para 3,6 mil milhões de euros em 2023.
Fenómenos como o da Sword Health, que se dedica à prevenção e tratamento da dor, ajudam a explicar esta evolução. A empresa fundada por Virgílio Bento, eleito no ano passado como um dos 50 líderes mais relevantes na área da tecnologia de saúde pelo Healthcare Technology Report dos Estados Unidos, foi também escolhida em 2023 pela Deloitte como a tecnológica de crescimento mais rápido em Portugal. Uns meses antes, o ranking americano Inc.5000 apurava que a Sword também tinha sido uma das não cotadas que mais cresceu nos EUA em 2022. Fechou o ano na 26ª posição do índice.
A penalizar o surgimento e desenvolvimento mais rápido de mais novos projetos nesta área da saúde, acredita Ricardo Vieira-Pires, estão várias questões. Desde logo a “escassez de talento /recursos humanos qualificados para a implementação da digitalização da saúde em Portugal”. Os salários pouco competitivos aumentam o desafio de atrair e reter profissionais qualificados, tanto no sector público como no privado. “O mesmo se verifica ao nível de equipamentos e infraestruturas obsoletas, que dificultam a integração de soluções inovadoras dentro dos hospitais”. A ilieteracia digital dos profissionais de saúde e pacientes também não facilitam mudanças.
Juntam-se a isto a dimensão do mercado local e o acesso a capital. “O acesso a capital em Portugal é relativamente baixo e isso impacta a capacidade de muitas startups sobreviveram até entrar no mercado”, reconhece ainda o responsável do EIT Health, uma comunidade de inovação, financiada pela UE, que promove programas de capacitação para profissionais de saúde, programas de aceleração para startups da área e outras iniciativas, de que é exemplo neste momento o TEF- Health (Testing and Experimentation Facility), uma plataforma para testar e validar tecnologias de IA em ambiente real, nos hospitais.
O velho desafio do financiamento continua atual
O financiamento é um dos grandes condicionantes para o sucesso de uma startup. Ainda antes disso, é um fator determinante para que qualquer ideia possa sair do papel. Isso aplica-se ainda mais em sectores como o da saúde, onde muitos projetos têm componentes de investigação, validação científica, certificação e todo um longo caminho antes de poderem chegar ao mercado. Entre a ideia no papel e o produto no cliente pode ir um longo período.
O SAPO TEK contactou várias gestoras de fundos de capital de risco de origem portuguesa para falar sobre o tema. Só a Lince Capital acedeu a partilhar opiniões, explicando que o principal motivo da sua baixa exposição a este sector “prende-se sobretudo com o facto da maior parte dos projetos que nos têm chegado estarem numa fase de desenvolvimento muito early stage”, reconheceu Tomás Lavin Peixe, Head of Innovation Funds.
“Na maioria dos casos, [estes projetos] acabam por estar inevitavelmente associados a um nível de risco mais elevado, tornando-se pouco compatíveis com a estratégia de investimento e timings dos nossos fundos de Venture Capital”.
Nos últimos anos, a sociedade tem acompanhado vários projetos de interesse e admite vir a investir em alguns, mas só mais à frente. Quando chegar a altura de decidir Tomás Peixe explica que fatores mais pesam na decisão. “Algo que tem sempre um peso muito grande em qualquer decisão de investimento prende-se com a qualidade e experiência da equipa de gestão, e a confiança que estes nos conseguem transmitir de que são as pessoas certas para escalar o projeto a nível global”.
Na área da saúde em particular outro aspeto relevante é o “apetite” de grandes players do sector pelo produto/tecnologia que a empresa está a desenvolver. O estágio de maturidade dos projetos é o outro critério chave, que cada fundo pode considerar aceitável a partir de diferentes pontos. “Em alguns casos particulares, temos também especial atenção ao ambiente legal envolvente e nos impactos que este pode ter no sucesso futuro do projeto em questão”.
A Lince angariou no final do ano passado o maior fundo de venture capital da sua história, com 150 milhões de euros e está agora ativamente à procura de novos projetos tecnológicos para investir. No portfólio tem já empresas como a Sensei ou a Oscar. Na área da saúde um dos exemplos é a Besthelth4u, que desenvolve I&D para soluções médicas e materiais para dispositivos médicos que interagem com a pele.
Capital de (pouco) risco
Para os empreendedores, o capital de risco em Portugal continua pouco disposto a correr riscos mais elevados, ao contrário do que acontece noutras geografias, e isso faz toda a diferença. “Há um crescendo de capitais de risco, mas continuam a ser insuficientes para aquilo que são as necessidades e a ambição do país de criar mais inovação”, defende Sara Gonçalves. “Para além disto, algum deste capital de risco não corre tanto risco como encontramos noutros países, como os Estados Unidos, e isso acaba por trazer algumas limitações”, acrescenta a CEO e fundadora da Actif.
Continua a ser difícil angariar capital na fase que decorre entre a ideia e as primeiras vendas “e perdemos muitos potenciais bons projetos nesta fase por não encontrarem os apoios que necessitam, que talvez devessem ser também outros para além dos VC”, acredita Sara, que idealizou e materializou na Atif uma plataforma para ajudar idosos a combater o sedentarismo com exercício físico e de estimulação cognitiva.
Redução dos custos para manter uma empresa aberta nos primeiros anos, até ter as primeiras faturações, seria para a empreendedora uma boa ferramenta para complementar as que já existem, “sobretudo para os fundadores que vêm de situações socioeconómicas desfavorecidas. Têm de pagar renda, comer e muitas vezes são confrontados com a necessidade de procurar outros trabalham para pagar as contas e, ou deixam os projetos de lado, ou estes acabam por demorar muito mais tempo a desenvolver”.
Sara Gonçalves da Actif, tal como os co-fundadores da Glooma, dois dos projetos que vamos abordar em maior detalhe neste especial, reconhecem o mérito das iniciativas de apoio ao empreendedorismo que têm vindo a ser lançadas para complementar as necessidades que o mercado não preenche. Destacam as iniciativas promovidas pelo PRR, IAPMEI ou ANI, mas apontam-lhes o mesmo problema: burocracia e demora excessiva.
“Podemos ter todos os apoios, mas se demorarem 12, 16, 24 meses para serem aprovados e entrar na empresa, a startup até lá se calhar já morreu, mesmo que a ideia fosse espectacular e tivesse pernas para andar”. Se não morreu já podem ter mudado completamente a estratégia ou as metas, porque a vida segue rápido numa startup, alerta Frederico Stock, co-fundador e COO da Glooma.
Os fundos europeus são outra opção pouco viável para projetos em fase de arranque, na perspetiva de Sara Gonçalves. “Além de serem muito burocráticos, é preciso sempre também investir à cabeça. São feitos para quem tem dinheiro e quer multiplicá-lo, que não é o caso da maior parte dos jovens que acabaram de sair da universidade e estão a lançar os seus projetos”.
Regulação é um peso pesado na Europa
A complexidade de processos legais e regulatórios na Europa também não facilita a vida às startups da saúde que querem atuar na região, se as soluções que desenvolvem tiverem de passar pelo crivo da regulação, como reconheceu ao SAPO TEK Jorge Meireles, CTO da Sword Health numa entrevista que fará também parte deste especial.
“Na Europa cada país tem as suas regras e as suas leis. É muito complexo expandir de maneira eficiente um produto como o nosso, que não é um produto de ecommerce regular, mas um produto clinico”.
Com uma larga margem de crescimento nos países onde já montou operação, a Sword Health prefere manter-se aí, para já, e apontar todas as baterias à inovação de uma oferta que tem a ambição de ajudar a eliminar a dor a 2.000 milhões de pessoas.
Muitas outras empresas são confrontadas com o mesmo tipo de decisão. É o caso da Glooma, que se prepara para entrar no mercado com uma luva e uma app de apoio que vão ajudar mulheres (e homens) a identificarem alterações na mama. A complexidade do processo de certificação que tem de preceder ao lançamento do produto, que é um dispositivo médico, fez a startup decidir que vai começar pelo mercado americano. “A informação que temos é que os processos de certificação na Europa estão a demorar muitíssimo tempo”, admite Frederico Stock.
Nos EUA, o feedback de outras startups é que o processo “é mais rápido e ágil, embora ainda assim leve algum tempo”. No entanto, a FDA (Food and Drug Administration) permite que as startups se candidatem a obter um “relatório de pré-submissão onde somos nós que fazemos as perguntas e a FDA dá-nos as respostas, sobre o que precisamos de fazer para que o dispositivo fique certificado”, explica Francisco Neto Nogueira, co-fundador e CEO da Glooma. Esta orientação prévia facilita a definição de um plano e a execução das medidas necessárias para cumprir requisitos. Abrevia o processo e retira-lhe risco algo que agrada aos investigadores, peça fundamental na estratégia de lançamento de qualquer startup.
Estamos ou não a vencer barreiras?
Mesmo com os desafios adicionais que o contexto europeu e português pode trazer às startups da saúde com ambições globais, a Startup Portugal frisa que o país “está a ganhar reconhecimento como um centro de inovação em diversos campos específicos” e dá um exemplo: a colaboração entre Portugal e o Health Cluster de Barcelona, um dos maiores da Europa. A parceria visa, entre outros fatores, fortalecer os laços entre os dois ecossistemas, facilitando a internacionalização e a entrada de investimento europeu nas startups de saúde em Portugal.
O EIT Health, que também já referimos, tem sido outra janela para o mundo usada por muitos projetos nacionais para buscarem investimento e parcerias internacionais, assim como outras incubadoras e polos de inovação para startups, alguns reconhecidos a nível internacional por estarem entre os melhores da Europa.
Vale a pena também destacar as iniciativas que a Beta-i, consultora de inovação colaborativa, tem promovido com diferentes parceiros nesta área, como o Building Tomorrow Together - Innovation in Dementia, uma iniciativa da Roche operacionalizada pela consultora para apoiar soluções inovadores que ajudem a melhorar a qualidade de vida de pacientes com demência e Alzheimer.
Neste universo de iniciativas que fomentam a inovação na saúde é ainda de destacar o Centro para a IA Responsável, financiado pelo PRR, porque desta agenda mobilizadora também vão sair novas soluções para a saúde que querem deixar marca portuguesa pelo mundo.
A Sword Health é uma das empresas ligadas ao consórcio, a trabalhar com o hospital de São João, no Porto, na adaptação da sua principal solução para que possa ser usada por doentes daquela unidade de saúde em processos de recuperação no domicílio.
A liderar este consórcio está a Unbabel, conhecida mundialmente pela sua plataforma de tradução baseada em inteligência artificial e curadoria humana, que usou os fundos do programa para acelerar um projeto que em breve acabará por resultar numa empresa independente.
Falamos no Halo, uma solução que ajuda pessoas que perderam a capacidade de comunicar a voltarem a fazê-lo, com a sua própria voz. A tecnologia já está a ser testada em doentes com Esclerose Lateral Amiotrófica e integra um dos cinco projetos que detalharemos neste especial. Projetos que mostram como novas formas de olhar para problemas que já existiam podem fazer a diferença e salvar vidas ou contribuir para uma vida com mais qualidade e contribuir para transformar um sector com oportunidades de modernização imensas e outras tantas barreiras à sua implementação.
Este artigo faz parte do especial Ideias que podem mudar vidas: 5 projetos de startups portuguesas para mudar a saúde que vale a pena conhecer
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