Por Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (*)
As ciências do Espaço fazem-se com colaborações internacionais, a desenhar instrumentos que quase sempre quebram barreiras em tecnologia, e a tirar sentido dos dados recolhidos com eles. Neste olhar para 2022, é incontornável mencionar a terceira publicação de dados da missão Gaia, da Agência Espacial Europeia (ESA), que está a registar as propriedades de mil milhões de estrelas para montar uma representação a três dimensões da Via Láctea. Terá aplicações, por exemplo, na reconstituição do passado da nossa galáxia, na descoberta de planetas em órbita de outras estrelas, e na deteção de pequenos corpos do Sistema Solar.
Outro marco científico no novo ano será a informação na luz infravermelha que o telescópio espacial James Webb, da NASA em parceria com a ESA e a Agência Espacial Canadiana, irá disponibilizar a partir do segundo semestre. Investigadores portugueses participam em vários dos projetos aprovados para o primeiro ciclo de observações. Aquele que é o maior telescópio alguma vez colocado no espaço permitirá abordar todo um universo de questões, como a história de formação dos sistemas planetários, a génese das estrelas, o enriquecimento do Universo com elementos químicos hoje essenciais à vida (como o carbono e o oxigénio), e o inesperado “mar” de galáxias anãs extremamente ténues encontradas numa fase do Universo jovem, entre muitas outras.
O telescópio James Webb esperou mais de um quarto de século para se tornar realidade, o que diz muito da maturação que estes projetos exigem. É natural que os astrónomos, no próximo ano, estejam já a antecipar os acontecimentos de 2023. Um deles é o lançamento do telescópio Euclid, da ESA, com ativa participação nacional e que fará o mapa de milhares de milhões de galáxias, permitindo estudar-lhes a geometria e a história. A comunidade científica portuguesa está já a desenvolver algoritmos baseados em aprendizagem de máquina (machine learning) para classificarem automaticamente o chamado “desvio para o vermelho” – uma propriedade indicativa da sua distância e idade – de cada galáxia desta gigantesca coleção.
Bem assente na Terra, na montanha do Paranal, no Chile, terá início no próximo ano a instalação do instrumento MOONS. Ligado ao telescópio VLT, do Observatório Europeu do Sul (ESO), este espectrógrafo terá componentes portuguesas desenvolvidas pelo Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). A primeira luz cósmica que irá receber poderá ter percorrido o espaço durante quase 13 mil milhões de anos, trazendo-nos uma visão do ambiente em que se formaram as primeiras galáxias.
Para retirar informação do espectro de “cores” dessa luz, os cientistas estão já a desenvolver algoritmos de modelação dos dados, e a adaptar ferramentas de análise (por exemplo, que classificam as idades das estrelas dentro da cada galáxia) para que sejam extensíveis a galáxias observadas em fases cadas vez mais jovens.
No próximo ano assistir-se-á à conclusão e testagem do protótipo de um sistema de medição para o telescópio espacial nos raios X, o Athena, também da ESA. Este observatório para o Universo das altas energias, com participação nacional tanto ao nível de engenharia como científico, fará o mapa da distribuição do gás quente nos enxames de galáxias, e permitirá o estudo de buracos negros com milhões de vezes a massa do Sol alojados no centro de galáxias do Universo primordial.
Pensa-se que esses buracos negros supermassivos e as suas galáxias coexistem de modo interdependente. As observações nos raios X feitas com o Athena, em complemento com as de outros instrumentos no infravermelho, visível e rádio (como as impressionantes imagens do radiotelescópio sediado na África do Sul, o MeerKAT), serão também objeto de algoritmos baseados em machine learning e que irão automaticamente isolar as galáxias com grande probabilidade de serem anfitriãs de um buraco negro supermassivo.
O desenvolvimento de algoritmos para o processamento de dados é transversal à astrofísica. A determinação da massa, tamanho e idade de estrelas, e a identificação de potenciais planetas de entre os dados obtidos com o futuro satélite PLATO, também da ESA e previsto para 2026, têm uma importante participação computacional do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA). A missão PLATO foi desenhada para criar o primeiro catálogo de potenciais planetas rochosos a orbitar na zona “habitável” (com água no estado líquido à superfície) de estrelas como o Sol. Portugal, através do IA, está também envolvido na parte de hardware, com o desenvolvimento de um sistema de testes para as câmaras do satélite, que será concluído nos primeiros meses de 2022.
No próximo ano, os planetas em órbita de outras estrelas (exoplanetas) continuarão a ser o foco de vários projetos com participação portuguesa. Um deles, aprovado para o primeiro ciclo de observações com o telescópio espacial James Webb, dará seguimento a um estudo de um sistema com seis planetas feito com dados da missão CHEOPS. Também com dados desta missão, o IA fará um anúncio no início do ano sobre um planeta deformado (não esférico), característica que, em complemento com outros dados, permite extrair informação sobre os materiais de que é feito.
Uma outra missão, a Ariel, aprovada pela ESA no final de 2020, e com lançamento previsto para 2029, concentrar-se-á no seguimento de uma seleção de cerca de mil planetas já descobertos, e conta com forte participação nacional na ciência e na engenharia. Um dos estudos do consórcio português para a Ariel, liderado pelo IA e alicerçado na investigação que este instituto tem feito sobre as atmosferas dos planetas do Sistema Solar, passará por olhar para estes mesmos planetas como se estivessem a anos-luz, ou seja, como se fossem exoplanetas. O objetivo é modelar o que iremos observar com a tecnologia atual quando nos depararmos com outros mundos longínquos semelhantes aos nossos. Na parte tecnológica, o grupo de instrumentação do IA irá testar e calibrar o telescópio durante a sua integração nos vários laboratórios que vão construir o instrumento.
Em terra, este mesmo grupo de instrumentação colocou em 2017 a bandeira portuguesa num dos instrumentos do ESO, no Chile. Depois de, no ano passado, o espectrógrafo ESPRESSO ter revelado que no planeta WASP-76b chove ferro, continua a produzir resultados científicos extraordinários e a encontrar e caracterizar, a anos-luz do Sistema Solar, mundos cada vez mais pequenos, ou menos massivos. Um novo recorde será anunciado pelo IA em 2022, sobre um planeta com apenas um quarto da massa da Terra.
Para além de contribuir para as ciências planetárias fora do Sistema Solar, o ESPRESSO está a ser usado em cosmologia (campo da ciência que estuda o Universo como um todo). A sua alta precisão está a testar a Física que rege o Universo, ajudando a saber se as constantes da Física foram de facto constantes ao longo do tempo cósmico. Depois das primeiras medições publicadas neste dezembro de 2021, esperam-se mais nos próximos tempos.
Ainda no campo da cosmologia, durante o ano de 2022 avançarão trabalhos ligados ao futuro observatório espacial de ondas gravitacionais, o LISA. Esta missão da ESA, prevista para o final da década, irá detetar ondas gravitacionais de maior comprimento de onda do que as que são agora detetadas com o observatório terrestre LIGO. Essa outra gama de ondas gravitacionais poderá informar sobre a Física do Universo primordial e ajudar a decidir entre os cenários atualmente propostos para explicar a física no domínio do infinitamente pequeno. A participação nacional no grupo de trabalho em Cosmologia da missão LISA visa descrever a génese dessas ondas gravitacionais primordiais e simular aquilo que será possível encontrar nos futuros dados do observatório LISA.
No limiar entre missão espacial e observação de superfície estará o projeto SUNRISE, do Instituto Max Planck e cuja equipa científica inclui a participação da Universidade de Coimbra e do IA. Um balão estratosférico transportará um telescópio solar em junho de 2022 para operar a 37 quilómetros de altitude acima do círculo polar ártico durante vários dias.
Irá ajudar a investigar processos-chave que dominam a física do campo magnético do Sol e a dinâmica da sua baixa atmosfera, com o objetivo de compreender fenómenos que se sabe terem impactos negativos para a Terra, em particular nos sistemas de transportes, comunicações e de energia. Objetivos semelhantes tem o telescópio solar Daniel K. Inouye (DKIST), do observatório norte-americano National Solar Observatory, cujas primeiras imagens com qualidade científica serão disponibilizadas em 2022.
De instrumentos postos no Sol está também a Universidade de Coimbra, que irá converter o seu atual espectro-heliógrafo e que espera torná-lo no primeiro instrumento a nível mundial a disponibilizar diariamente mapas do disco completo do Sol com várias propriedades físicas obtidas em simultâneo e associadas a cada ponto e em diferentes camadas.
Continuando no Sistema Solar, a missão EnVision, dedicada a Vénus, foi aprovada em junho pela ESA. Terá participação portuguesa, nomeadamente do IA através da sua experiência no estudo da atmosfera deste planeta, para a pesquisa de vulcanismo ativo na sua superfície, inacessível sob o seu espesso e infernal manto de nuvens. Os dados das missões Mars Express, já em final de vida, e da recente ExoMars serão também alvo de investigações interessantes por cientistas portugueses nos próximos anos, centradas na química da atmosfera e, no solo, em vestígios do escorrimento de água no passado deste planeta.
Apesar de extensa, esta lista é parcial. Outros atores nacionais certamente a poderiam expandir. Para citar apenas alguns: a Agência Espacial Portuguesa (Portugal Space), a participação portuguesa no maior radiotelescópio do mundo, o SKA, e no Telescópio Solar Europeu, o Centro para Astrofísica e Gravitação (CENTRA), a investigação ligada ao espaço realizada no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), e o ecossistema de empresas do sector aeroespacial português. Ao nível internacional, vale a pena manter a atenção no Observatório Europeu do Sul (ESO) e na União Astronómica Internacional (IAU). É também de assinalar que, em 2022, se assistirá provavelmente a novos desenvolvimentos quanto à coexistência da investigação sobre o Universo com a implementação de constelações de satélites de comunicações.
Portugal está empenhado na fronteira da investigação atual em temas do Espaço, fruto de anos de investimento em equipas, nas missões da Agência Espacial Europeia e em instrumentos do Observatório Europeu do Sul. Ainda que os dados venham do céu, o futuro que esse passado preparou tem de ser garantido de forma constante. Para isso é preciso assegurar a continuidade das equipas de investigadores, pois só com elas o país poderá realmente explorar ao nível da ciência o investimento colocado nos instrumentos e missões que estão já, ou irão em breve, dar os seus frutos.
(*) Texto de Sérgio Pereira, com as contribuições de Tiago Barreiro, Alexandre Cabral, Tiago Campante, Pedro Machado, Polychronis Papaderos e Nuno C. Santos (Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, Universidade de Lisboa, Universidade de Porto).
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