Por Luis Bravo Martins (*)

Em sociedades ocidentais como a nossa, habituámo-nos a partilhar coletivamente a noção de que certos problemas são consensuais ou de acordo fácil. Alguém com bom senso identifica o problema e respetivos impactos, uma larga maioria concorda com a necessidade de nos salvaguardarmos desses impactos e a regulação surge naturalmente, seja para salvaguardar direitos fundamentais, nos salvar duma catástrofe social ou até mesmo para garantir a nossa sobrevivência enquanto espécie.

Claro que, no presente momento da História em que a polarização grassa, a pré-existência desse bom senso generalizado é otimista - mas ainda assim consigo-o encontrar ao abordar temas de interesse universal, como por exemplo a clonagem humana.

São diversos os desafios existenciais colocados pela existência de clones, bem patentes em obras como o “Never Let me Go” de Kazuo Ishiguro ou o filme “O Sexto Dia”, onde o Schwarzenegger chega a casa para encontrar a sua esposa a celebrar o aniversário com um clone seu. A clonagem humana põe em causa a condição única de cada ser humano, a sua identidade e em teoria permite que este se possa replicar até à eternidade, de clone em clone, podendo inclusivamente clonar apenas partes do corpo para fins puramente terapêuticos. Só por isto mas não só por isto, faz sentido banir sem reservas a clonagem humana.

Contudo, ao pensar em serviços como o HereAfter AI, onde interagimos com um  agente de Inteligência Artificial que tiveram acesso a um volume de dados pessoais suficiente para recriar o tom e assuntos normais de conversação de pessoas já falecidas, não estaremos a falar de um género de clonagem digital?

Na utilização de avatares fotorrealistas, serviços como os Codec Avatars da Meta permitem uma experiência de realidade virtual onde os nossos detalhes fisionómicos são passados para o nosso avatar através duma tecnologia patenteada chama-se skin replicator. Como o nome indica, esta tecnologia visa replicar todos os poros de pele do utilizador. Até 25 000 pontos de identificação faciais podem ser incluídos nestes avatares. Por agora, a Meta está a realizar um roadshow da tecnologia para recolher um volume de dados suficiente para categorizar eficazmente os diversos aspetos biométricos que pretende replicar (cabelo, pelo, tons de pele, etc).

Notem que não estamos a falar de problemas de cibersegurança ou deepfakes fraudulentos criados por criminosos. Falamos de serviços comerciais, legalmente constituídos que prestam um serviço baseado em dados do utilizador que foram cedidos com consentimento para esta utilização. Como tal, tanto o agente de AI como o avatar não são propriedade do utilizador que os criou, mas das plataformas que forneceram o serviço. O scan facial, os dados pessoais e sociais do utilizador, tudo isto é conteúdo para cada uma destas plataformas, cedido com consentimento expresso pelo utilizador para ser utilizado e monetizado pela plataforma. Conteúdo que poderá decerto sobreviver ao utilizador. Conteúdo que replica a fisionomia, a interação, o estilo, a memória, o convívio com o utilizador.

A facilidade e, convenhamos, irresponsabilidade com que partilhamos os nossos dados biométricos e não só dá escala a este problema. É hoje importante regular estas práticas de forma clara e salvaguardar os nossos direitos humanos fundamentais, começando pela identidade, bem como criar conteúdos para a utilização responsável de tecnologia emergente nas escolas.

Mas numa realidade crescentemente híbrida, antes de falarmos da salvaguarda dos nossos direitos digitais, é igualmente ou ainda mais importante salvaguardá-los no mundo físico.

A verdade é que apenas 37 países dos 193 países membros da ONU baniram expressamente a clonagem humana, sendo um deles Portugal. Outros 15 baniram a clonagem humana para fins reprodutivos, mas permitem-na para fins terapêuticos.

E este é o primeiro tema em que precisamos de alargar o consenso.

(*)  co-author do livro "Metaversed - See Beyond the Hype"