Por Tiago Bessa (*)
O setor digital foi considerado, durante anos, como um “faroeste legal”, sem regras minuciosas, sem reguladores específicos e sem uma aplicação efetiva. Mas a história está a mudar.
O crescimento frenético dos serviços digitais e a imparável transformação digital da sociedade têm vindo a atrair uma cada vez maior atenção do poder legislativo. A realidade forçou o reconhecimento de que os novos modelos de negócio, potenciados pelo desenvolvimento da Internet, são incontornáveis na vida dos cidadãos e trazem cada vez mais riscos que tem de ser enfrentados e regulados.
A União Europeia (UE) tem procurado tomar a liderança em definir aquilo que entende que deve ser a arquitetura normativa do setor digital e, assim, estabelecer um modelo que possa ser seguido por outros blocos ou países.
O Regulamento dos Serviços Digitais (DSA), também apelidado de Constituição Digital da UE, insere-se neste contexto e o seu cumprimento é integralmente obrigatório desde 17 de fevereiro. Este visa promover uma melhor prestação de serviços no setor digital e é aplicável a diferentes entidades, como prestadores de acesso à Internet, serviços cloud e gestores de redes sociais, plataformas e marketplaces.
Debaixo do mote de que o que é ilegal offline, também o é online, todos os serviços que envolvem a transmissão ou o armazenamento de conteúdos passam a ter novas ou regras reforçadas. Este objetivo é atingido através da chamada moderação de conteúdos ilegais. Embora, em geral, não existam deveres de “patrulhamento” proativo da Internet, as entidades sujeitas ao DSA devem moderar os conteúdos que circulam nas suas redes ou que alojam quando sejam alertadas, por entidades públicas ou privadas, para a ilegalidade dos mesmos.
Neste contexto, uma das principais novidades do DSA está relacionada com a estrutura institucional que propugna e que envolve a designação dos chamados Coordenadores dos Serviços Digitais (CSD) em cada Estado-Membro. O CSD aproxima-se de uma espécie de “regulador” do setor digital, com poderes para supervisionar a aplicação do DSA, investigar e punir incumprimentos.
Em Portugal, o Governo decidiu, através do Decreto-Lei n.º 20-B/2024, de 16 de fevereiro (DL 20-B/2024), designar a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) como CSD e, como autoridades competentes, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em matéria de comunicação social e outros conteúdos mediáticos e a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), em matéria de direito de autor e de direitos conexos.
Mas as entidades relevantes para efeitos do DSA não se esgotam neste triângulo. Desde logo, há que contar com os Tribunais e com o Ministério Público e como o DSA tem uma aplicação horizontal, outras entidades administrativas (como os reguladores setoriais) podem também ter uma palavra a dizer. Por este motivo, no âmbito do Grupo de Trabalho criado pelo Despacho n.º 1747/2024, de 15 de fevereiro, para, entre outros objetivos, proceder à identificação de outras entidades relevantes, foram listadas 28 entidades públicas[1] que têm ou podem ter atribuições relevantes no âmbito do DSA.
Este enquadramento suscita algumas questões.
Em primeiro lugar, a designação da ANACOM como CSD. Sendo o DSA um diploma de aplicação transversal a vários setores, poder-se-á questionar a escolha de uma entidade com uma matriz típica de regulador setorial (do setor das comunicações). Outras opções poderiam ter sido ponderadas, como (i) a criação de uma nova entidade para regular o setor digital (pensando já, eventualmente, na futura aplicação do Regulamento de Inteligência Artificial), (ii) a designação da Autoridade da Concorrência (que já tem uma matriz de atuação horizontal) ou (iii) a junção de diferentes entidades (como a sempre discutida concentração entre a ANACOM e a ERC).
Não sabe se e de que forma estas opções foram ponderadas. No entanto, a verdade é que a ANACOM já tem atribuições no âmbito dos serviços da sociedade da informação (embora pouco utilizadas) e surgia como a entidade mais bem posicionada para absorver as vestes de CSD[2], em especial em termos de recursos humanos, materiais e financeiros. Também é verdade que o facto de a designação ter sido formalizada apenas um dia antes da aplicação integral do DSA não permitia opções mais inovadoras.
Em segundo lugar, a escolha da ERC e da IGAC como autoridades competentes, em simultâneo com o CSD. Esta opção não era obrigatória e parece que o Governo a fez para procurar agradar a diferentes sensibilidades dentro da Administração Pública. Quando se opta por esta estrutura, o DSA não explica como deve ser feita a interação entre o CSD e as autoridades competentes, mas os poderes mais importantes nele previstos, em termos de investigação, aplicação, etc., passam a ser partilhados. Isto significa que estamos perante uma estrutura mais complexa e burocrática, que pode vir a prejudicar a qualidade da supervisão e aplicação do DSA.
Havendo esta partilha, não é claro como estas entidades vão exercer os seus poderes. Por exemplo, (i) se terão competências exclusivas nas matérias/setores em que atuam (e aqui, como se deve interpretar os “outros conteúdos mediáticos” que estão sob a alçada da ERC?), (ii) como vão exercer essas competências em situações em que existe uma real ou potencial convergência (até porque existem serviços que estão simultaneamente sob a alçada da ANACOM e da ERC) e (iii) se vão partilhar as suas competências e de que forma.
Perante uma Administração Pública tipicamente resistente em assumir responsabilidades em “zonas cinzentas”, teria sido uma opção mais avisada concentrar os poderes do DSA numa única entidade ou então clarificar as diferentes esferas de atuação, o que o DL 20-B/2024 não fez, criando apenas o dever de se definir um modelo de colaboração conjunto, sob proposta do CSD, o que também não pode deixar de suscitar várias dúvidas do ponto de vista de legalidade.
Em terceiro lugar, este modelo faz lembrar a estrutura de supervisão instituída pelo Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro, que aprovou a Lei do Comércio Eletrónico, que envolve a designação de uma entidade de supervisão central (a ANACOM), com atribuições em todos os domínios regulados por este diploma, e entidades de supervisão “setoriais”, com partilha de competências.
Este modelo de partilha nunca funcionou plenamente em termos práticos e, por isso, o regime de supervisão da Lei do Comércio Eletrónico não é e não foi um bom exemplo para o DSA, tendo, de resto, motivado a aprovação de Memorandos de Entendimento entre a IGAC e entidades do setor da cultura e a publicação de diplomas avulsos sobre a moderação de conteúdos, como a Lei n.º 82/2021, de 30 de novembro.
Por essa razão, o já referido Grupo de Trabalho tem como especial missão proceder à definição clara das respetivas atribuições das autoridades competentes e de outras entidades administrativas, assegurando uma cooperação estreita e eficaz com o coordenador dos serviços digitais. Espera-se, por isso, a breve trecho, até 30 de maio, uma proposta deste Grupo de Trabalho que possa ajudar a clarificar estas questões.
Teria sido preferível fazer este trabalho de levantamento antes de 17 de fevereiro, desejavelmente com a colaboração da sociedade civil, mas mais vale tarde que nunca. Sem um forte e claro regime de colaboração entre tantas entidades relevantes para o DSA, será de temer por uma fraca ou inexistente atividade de supervisão, que irá comprometer os objetivos que presidiram à aprovação deste diploma.
(*) Sócio | Partner da Vieira de Almeida
[1] A lista por ser consultada aqui.
[2] De resto, a maior parte dos Estados-Membros decidiu escolher, precisamente, o regulador das comunicações eletrónicas. Mais informações aqui.
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