A saúde foi uma das áreas em destaque ao longo de todo o ano de 2020 e em 2021 volta a sê-lo, por causa da pandemia. Neste período foram acelerados vários investimentos no sector, com destaque para os que se relacionam com a tecnologia, que tem assumido um papel fundamental num contexto onde otimizar e fazer à distância se tornaram fundamentais.
As teleconsultas e o internamento domiciliário, monitorizado remotamente com o apoio de tecnologia, são dois exemplos de soluções que já podiam ser utilizadas em maior escala antes da pandemia, mas que tinham pouca expressão e que no último ano acabaram por disparar.
Em 2019, o Barómetro de IA e Telessaúde da Glintt e da APAH - Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares mostrava, por exemplo, que apesar de 87% dos hospitais públicos recorrerem à telemedicina, apenas 44% dos profissionais de saúde estavam realmente motivados para a sua utilização. Dados do Ministério da Saúde, relativos a 2020, indicavam por outro lado que ao longo do ano passado foram realizadas 18,5 milhões de consultas não presenciais (nos cuidados de saúde primários), o dobro do número registado um ano antes. Este ano, e até maio, foram realizadas 9,3 milhões de consultas à distância nas mesmas unidades, valor que volta a representar um crescimento de quase 60%, face ao período homólogo.
Como frisa também o ministério de Marta Temido, "a Pandemia COVID-19 veio intensificar o recurso, por parte dos profissionais e serviços de saúde, a novas formas de interação e de prestação de cuidados de saúde aos seus utentes". Neste âmbito, a tutela reconhece que a tecnologia tem tido um papel central para ajudar a "ultrapassar os constrangimentos relacionados com as medidas de distanciamento físico e circulação de pessoas que foi necessário adotar, mantendo assegurado o acompanhamento dos utentes".
A estes números das consultas à distância nos centros de saúde devem ainda somar-se os das consultas em telemedicina nas unidades de saúde hospitalares, que segundo os dados do Portal da Transparência em 2020 aproximaram-se das 50 mil e este ano até final de maio quase já tinham atingido as 150 mil, números que deixam poucas dúvidas relativamente ao peso que esta alternativa ganhou no Sistema Nacional de Saúde.
Pedro Faria, manager de Health Solutions da F3M, identifica além destas, outras duas áreas onde o investimento em tecnologia na saúde acelerou desde o início da Covid-19: a faturação eletrónica e os exames sem papel. No privado acrescenta que “trabalhar a prevenção e trazer o utente para o centro dos sistemas de saúde”, são também tendências que têm também vindo a ganhar destaque.
Transversalmente, em toda a saúde, e como reconhece o mesmo responsável, as Tecnologias de Informação acabaram por ter um papel muito relevante durante a pandemia, “não só pela relevância dos dados tratados referentes à própria pandemia, mas pela importância destes números para as decisões políticas de combate à doença”.
“Tentar imaginar uma pandemia sem esta rapidez no acesso à informação, é assustador. E aqui as TI tiveram um papel fundamental pois, sem tecnologia, iriamos assistir certamente a uma calamidade pública e sanitária sem precedentes”, Pedro Faria, F3M
App My Luz disponibilizou 2,6 milhões de resultados de exames no último ano
Públicos e privadas acabaram sobretudo por procurar neste último ano formas de manter a ligação a um utente que deixou de poder usar os serviços de saúde como sempre fez e os prestadores que se tinham adiantado nestes investimentos acabaram por recolher os benefícios dessa aposta.
O Grupo Luz Saúde tinha começado a investir há três anos na digitalização dos canais de interação com o cliente, uma aposta materializada na app My Luz, que no último ano disponibilizou 2,6 milhões de resultados de exames, 425 mil prescrições de exames e consultas e 681 mil faturas. Através da app foram ainda agendadas cerca de 600 mil vídeoconsultas, consultas e exames e realizados mais de 40 mil pagamentos.
“Este investimento fez com que a experiência do cliente fosse completamente integrada entre o físico e o digital e que, acima de tudo, seja possível fazer a gestão da saúde do agregado familiar a partir de qualquer parte do mundo”, explica Nelson Brito, diretor de serviço ao cliente do grupo.
As videoconsultas podem representar 10% do total das consultas na rede Luz Saúde já este ano, revela Nelson Brito, diretor de serviço ao cliente do grupo
Em ano de pandemia, a app tornou-se um canal privilegiado, complementando pela possibilidade de acesso remoto ao Hospital, através do serviço Luz 24, que garantia a triagem por telefone e o encaminhamento para videoconsultas, explica também o responsável, antecipando que este ano este tipo de consultas possa já representar 10% do total de consultas na rede.
Outro área onde a pandemia tornou ainda mais óbvia a importância da tecnologia foi no tratamento de dados, que possam ajudar a antecipar necessidades e a gerir melhor os recursos disponíveis. Esta foi por isso também uma das áreas onde houve reforço de investimento com resultados práticos importantes.
Gestão eficiente de dados ajudou hospital de São João a enfrentar desafios da Covid-19
Maria João Campos, diretora do serviço de Tecnologias de Informação e Comunicação do Centro Hospitalar Universitário de São João, conta que antes de a Covid-19 chegar em força a Portugal o hospital percebeu que precisava de estar preparado para novas necessidades de informação e organização, porque os dados disponíveis eram escassos e as exigências novas.
Logo nessa altura o hospital desenvolveu um dashboard para monitorização da Covid-19 e, no início de março, ainda sem normas orientadoras da DGS publicadas, propôs um modelo para a “identificação de casos positivos a partir de resultados de Patologia Clínica, em que o doente ficava de imediato com a informação de classificação positivo/negativo, sendo rastreado em todas as áreas assistenciais e permitindo desta forma conhecer todos os casos existentes no hospital”, explica a responsável.
“Esta estrutura, desenvolvida e usada para suporte à decisão durante a pandemia, permitiu-nos assegurar a rastreabilidade interna de casos positivos, com melhoria da eficácia e controlo de potenciais surtos internos, proteger o doente internado e os profissionais”, Maria João Campos, diretora do serviço de Tecnologias de Informação e Comunicação do Centro Hospitalar Universitário de São João
A solução foi evoluindo à medida que as normas e os critérios foram ajustados e que o conhecimento sobre a doença progrediu, aumentando as fontes de dados usadas e abrangendo diferentes áreas do hospital e a monitorização de novos circuitos.
“Esta estrutura, desenvolvida e usada para suporte à decisão durante a pandemia, permitiu-nos assegurar a rastreabilidade interna de casos positivos, com melhoria da eficácia e controlo de potenciais surtos internos, proteger o doente internado e os profissionais”. Mais tarde o sistema serviu também para monitorizar a vacinação dos profissionais.
Com esta aposta, o hospital acabou por conseguir fazer um mapeamento real da ocupação do hospital durante a pandemia e com a ajuda de modelos preditivos conseguiu ter sempre uma previsibilidade máxima e mínima da necessidade de meios e recursos. “As áreas clínicas nunca foram surpreendidas com as necessidades, o que permitiu que, atempadamente, os profissionais pudessem ajustar as áreas, recursos e meios para a resposta necessária”, acrescenta Maria João Campos.
Portugal no contexto europeu: bons e maus exemplos
O trabalho e a colaboração remotas foram outras áreas onde a pandemia acelerou mudanças, que muitos acreditam que vieram para ficar. No São João, por exemplo, mil colaboradores passaram a trabalhar à distância quando a pandemia começou, graças ao investimento que o hospital já tinha feito na renovação da sua infraestrutura tecnológica.
“Os modelos de colaboração remota são uma realidade que veio para ficar e tal como o trabalho remoto que assistimos noutros sectores de atividade, vamos assistir a um novo modelo de prestação de cuidados de saúde no período pós pandemia”, antecipa Filipa Fixe, recordando os resultados de um estudo da consultora McKinsey, já de janeiro deste ano, onde os CEO de alguns hospitais nos EUA anteciparam que no futuro a telessaúde poderá representar 30% de toda a sua atividade.
Mas para lá chegar há um caminho que falta percorrer. “Esta onda de aceleração tecnológica deve continuar no momento pós-pandemia, com uma arquitetura de referência que defina a resiliência das infraestruturas, a interoperabilidade, a recolha de dados de forma segura e anonimizada e a usabilidade das soluções por parte dos utentes, profissionais de saúde e gestores”, acrescenta a administradora executiva da Glintt.
Portugal, a par da Holanda, liderava na adoção de soluções de prescrição eletrónica de receitas na Europa no estudo Shaping the Future of European healthcare da Deloitte, realizado em 2020
Num balanço entre o que já existe - e muito já existia antes da pandemia - e o que falta fazer, Portugal não compara mal com o resto da Europa nos esforços de digitalização da saúde, garante a Deloitte. Em algumas áreas o país está mesmo em destaque. No estudo “Shaping the Future of European healthcare”, publicado pela consultora em 2020, Portugal, a par da Holanda, liderava na adoção de soluções de prescrição eletrónica de receitas. 96% dos profissionais entrevistados em Portugal reportavam já a utilização desta solução. A Glintt acrescenta a adoção massiva do Processo Clínico Eletrónico, como outra área onde Portugal tem sido pioneiro.
Mas voltando ao que falta fazer e ao estudo da Deloitte, a pesquisa mostrou que em Portugal os três maiores desafios na implementação de tecnologias no sector da saúde continuam a ser a burocracia (66,7%); encontrar as tecnologias certas (62%) e a formação do staff para uma reutilização adequada da tecnologia (44%).
“Neste ponto específico da formação, um outro indicador relevante foi que em Portugal cerca de 47,3% dos entrevistados apontaram não ter tido acesso a nenhuma formação formal nos últimos meses, enquanto que a nível europeu esse valor se situava nos 25,5%”, destaca Nelson Fontainhas, partner da consultora.
Estratégia e infraestruturas são incontornáveis para o sucesso
A interoperabilidade dos sistemas informáticos continua também a ser um dos grandes desafios, e é aliás uma das prioridades de investimento apontadas pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, no que se refere à operacionalização dos investimentos que vão ser suportados pelo Plano de Recuperação e Resiliência.
Maria João Campos, do Hospital de São João, reconhece o problema e sublinha que “o desenvolvimento de sistemas de informação é um trabalho que exige gestão estratégica e planeamento de gestão da informação na forma como se faz evoluir os sistemas como um todo”. Por exemplo, no caso do São João, uma das prioridades de investimento recente têm sido as áreas de analítica e inteligência de dados, tirando partido de investimentos anteriores na infraestrutura de armazenamento e suporte aos sistemas de informação, na desmaterialização e na integração dos sistemas TI de natureza clínica.
“O desenvolvimento de sistemas de informação é um trabalho que exige gestão estratégica e planeamento de gestão da informação na forma como se faz evoluir os sistemas como um todo”, Maria João Campos, Hospital de São João
Para que cada investimento seja rentabilizado e potenciado é preciso “ter em conta todos os interlocutores no processo e objetivos bem definidos, o que nem sempre ainda acontece”. “Quando essa estratégia não existe, de facto, a desarticulação dos projetos que desenvolvemos e a incapacidade de dar continuidade a resultados que se constituem como piloto e que, por vezes, não são sustentáveis face à realidade da instituição, fazem-se sentir no trabalho dos profissionais de saúde como soluções avulsas e desarticuladas”.
A solução aqui, defende a responsável, passa por “investir em áreas mais avançadas, mas esse investimento tem que ser sustentado em infraestruturas robustas e informação completa e de qualidade”, admitindo ainda que, na saúde, “neste momento, sem dúvida, os maiores desafios passam pelo investimento e capacitação das instituições de saúde quer de meios tecnológicos quer ao nível dos recursos humanos das áreas de sistemas de informação e inteligência de dados”.
No que se refere à gestão dos dados também “continua em falta um Registo de Saúde Eletrónico Único, partilhado pelo sector Privado e Público, que deve ser promovido pelo SNS”, recorda Pedro Faria Salgado, manager de Health Solutions da F3M. “Com um Registo de Saúde Eletrónico Único vamos conseguir um impacto na qualidade dos serviços de saúde e respetiva consequência na saúde e qualidade de vida dos utentes”.
Saúde preventiva: um longo caminho por percorrer
Todas estas questões remetem para uma capacidade melhorada de aproveitar volumes de dados, que com a digitalização de processos crescem exponencialmente e que podem ser aproveitados não só pelos próprios hospitais, para gerir melhor recursos e antecipar problemas, como no exemplo partilhado do São João a propósito da Covid-19, mas também por outros parceiros da sociedade. Nesta área, o caminho a fazer ainda é longo.
“Ainda existe muita informação que está segmentada pelos diversos hospitais / prestadores de saúde, não existindo uma disponibilização sistemática e consistente de dados anonimizados à sociedade, nomeadamente à sociedade académica”, reconhece Nelson Fontainhas, da Deloitte.
“Um bom exemplo é o que acontece em alguns países nórdicos, onde é obrigatório que todos os prestadores de saúde atualizem um repositório central com os dados dos utentes. Em Portugal ainda estamos algo longe desta visão, contudo acreditamos que será um caminho a seguir uma vez que, cada vez mais, o cruzamento e completude da informação será relevante para se poderem fazer análises mais finas e definir estratégias mais realistas/ personalizadas”, acrescenta o responsável.
“Ainda existe muita informação que está segmentada pelos diversos hospitais / prestadores de saúde, não existindo uma disponibilização sistemática e consistente de dados anonimizados à sociedade, nomeadamente à sociedade académica”, Nelson Fontainhas, partner da Deloitte.
Também no domínio da saúde preventiva o estudo da Deloitte revelou que Portugal está a dar os primeiros passos. Verifica-se um nível elevado de incerteza e desconhecimento que decorre dos “profissionais de saúde ainda não reconhecerem amplamente os benefícios dessas tecnologias, apesar de confiarem que as mesmas podem melhorar os cuidados de saúde”. Isto reflete-se depois nos níveis de adoção de tecnologias mais avançadas, como diagnóstico no ponto de tratamento, monitorização remota, Apps de paciente, entre outras, onde estamos abaixo da média Europeia.
Futuro (ainda mais) marcado pela tecnologia e pela experiência
“O futuro da saúde passa por tratar dos saudáveis antes que fiquem doentes, através da descentralização, da miniaturização e da personalização, capacitando o cidadão e habilitando os profissionais de saúde, destaca também Filipa Fixe. Passa ainda por ir ao encontro das necessidades de um utente/cliente habituado a ter um nível de experiência, que se compatibiliza cada vez menos com aquilo que é ainda hoje a ida a um hospital, normalmente um processo moroso, de longas esperas e períodos sem informação.
“Caminhamos, atualmente, para uma visão centrada nas pessoas, onde a tecnologia é a base. O consumidor de cuidados de saúde tem vindo a tornar-se cada vez mais exigente e, como tal, procura mais tecnologia que possa contribuir para o seu bem-estar”, nota a administradora da Glintt. “Adicionalmente, o consumidor atual de cuidados de saúde procura mais conveniência e é a favor de uma relação de proximidade e confiança com o seu médico ou enfermeiro e, para isso, apoia-se nos meios tecnológicos de que dispõe”.
Neste percurso, Filipe Fixe aponta as oportunidades em torno de tecnologias como a IA, a IoT e ou a Telemedicina, que vão serão potenciadas pela chegada do 5G e de uma “internet tátil ativada por uma latência ultrabaixa do 5G, que permitirá a um médico realizar um procedimento num paciente que esteja fisicamente num local diferente do seu. Os movimentos do cirurgião num local seriam recriados instantanemente por um equipamento computurizado noutro”.
No entanto, a responsável também considera urgente que estas ferramentas ganhem maturidade e vê como crítico que a sua utilização seja orientada para assegurar “o princípio da equidade, beneficiando todos os cidadãos, sem exceção e sem marginalizar os que se encontram a grandes distâncias dos grandes centros urbanos ou com maiores dificuldades económicas”.
“Caminhamos, atualmente, para uma visão centrada nas pessoas, onde a tecnologia é a base. O consumidor de cuidados de saúde tem vindo a tornar-se cada vez mais exigente e, como tal, procura mais tecnologia que possa contribuir para o seu bem-estar”, Filipa Fixe, administradora da Glintt
Para já, as evidências mostram que o tecido empresarial e as universidades têm o talento e a inovação para ajudar a capitalizar o valor destas e de outras tecnologias ao serviço da transição digital da saúde, uma das prioridades do Plano de Recuperação e Resiliência. Faltará talvez aproximar mais a inovação feita pelas startups nacionais do Sistema Nacional de Saúde, como sublinha Miguel Amador, responsável do EIT Health em Portugal, que em entrevista ao SAPOTeK deu vários exemplos da inovação que por cá se faz, neste ecossistema.
“A contratação pública na área da Saúde em Portugal ainda é maioritariamente configurada para empresas de maior dimensão”. O responsável local da rede europeia de inovação sugere por isso “uma maior colaboração entre os players existentes, mais capazes de vender inovação no mercado e as start-ups responsáveis pela maior parte do desenvolvimento da inovação” para ultrapassar esta barreira.
Este artigo integra o Especial Saúde Digital: O que a tecnologia traz de mais valor para o combate à Covid-19
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