João Pires da Cruz (*)

 

Numa das mais famosas cenas de uma das mais notáveis obras de Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, o génio retrata os efeitos do trabalho repetitivo numa linha de montagem (se não sabe do que falo, procure no YouTube e delicie-se a ver uma das obras maiores do ser humano). A cena pretendia caricaturar uma invenção relativamente recente na altura, a linha de montagem, onde cada trabalhador fazia um trabalho repetitivo especializado, para tornar a manufatura mais eficiente e os preços do produto final mais baratos. Comparando com aquilo que vemos hoje em qualquer fábrica moderna de automóveis, esse ato repetitivo e especializado foi substituído por braços mecânicos controlados por computadores. O ser humano, esse, foi transferido para onde a inteligência é necessária: para a “mesa” de desenho (até esta, hoje, é uma máquina) e para a programação e controlo das máquinas.

Estamos hoje na segunda vaga desta história. Depois da mecanização da tarefa, estamos a mecanizar a perceção que leva a tarefa. Quando a personagem de Chaplin aperta os parafusos, o ser humano sabe o que é o parafuso e o que não é. Na altura, com os recursos disponíveis, era inimaginável que se conseguisse mecanizar essa perceção. Repare-se no que seria necessário, captar uma imagem que não está estática, identificar o objeto sobre o qual se pretendia agir e, com essa identificação, despoletar a tarefa de apertar o parafuso.

Desde aí até agora, muito foi desenvolvido. Não só em termos de capacidade de computação, como em matemática pura necessária para lidar teoricamente com o problema. Se pensarmos do ponto de vista estatístico, se um computador vir um parafuso 100 vezes e se nós estivermos ao lado a dizer “isto é um parafuso”, à centésima primeira dificilmente o computador não saberá que aquilo é um parafuso. E “machine learning” é exatamente isto, o computador poder percecionar algo para, com esse algo, nós automatizarmos as ações subsequentes. Por exemplo, sistemas mais sofisticados já conseguem aprender a condução de um veículo numa estrada porque do ponto de vista matemático conseguimos não só identificar os objetos, como as correlações entre eles de forma a eliminar o que não interessa para o nosso objetivo final. E hoje chegamos ao ponto, espectável, onde temos sistemas que conseguem perceber o mundo de forma mais eficiente que o ser humano.

Matematicamente, aquilo que é feito é definir o objetivo (o que é um parafuso e o que não é um parafuso) dentro de um espaço de variáveis que é o adequado para o problema em concreto (na cena de Chaplin, a preto e branco, a tonalidade dos parafusos é mais carregada que aquilo que não é parafuso). O computador perante estes dados treina-se (determina o peso da tonalidade para a identificação do parafuso) para depois, quando aparecer um objeto de diferente tonalidade, saber quão provável é aquele objeto ser um parafuso.  

Ainda não estamos no ponto em que tudo pode ser percecionado por um computador, porque nem toda a matemática está já desenvolvida. Hoje ainda só estamos no ponto em que aquilo que pode ser percecionado é aquilo em que o erro diminui com o tamanho da amostra. Isto é, quanto maior for o numero de vezes que virmos um objeto, mais difícil será de errarmos na sua perceção. Isto parece natural, mas não, nem em tudo na vida o erro decresce com o tamanho da amostra. Os objetos económicos, por exemplo, não caem nesta classificação e, por isso, nem tudo é passível de ser metido numa máquina para ser aprendido, tal qual esses objetos nos aparecem à frente.   Mas em quase tudo o que tem uma natureza material podemos estar descansados.

Como consequência de automatizarmos a perceção das coisas, o ser humano será também afastado daquelas tarefas onde a perceção leva a um ato e será impelido para as ações onde as suas características são insubstituíveis. Onde a inteligência e a criatividade são fatores importantes. Deixar de conduzir um automóvel nas manhãs de trânsito será, certamente, uma benesse para a esmagadora maioria das pessoas. Liberta-nos tempo para sermos inteligentes e (re)ver o “Tempos Modernos”. 

 

(*) PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer