A modernização das escolas e dos processos de aprendizagem no sistema de ensino português está em marcha, apoiada pelos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência. Nos últimos anos letivos chegaram às escolas mais de um milhão de computadores, uma das vertentes do programa de modernização Escola Digital que também prevê a capacitação digital dos docentes e a produção de recursos educativos digitais.
Segundo dados do Ministério da Educação, foram já fornecidos às escolas 1.049.581 computadores para utilização por alunos e docentes e 15 mil computadores para utilização com fins administrativos e de gestão. Neste momento decorre também a instalação de 20 mil projetores nas salas de aula e ao longo do ano vão ser adquiridos mais 419 computadores, chegando ao número previsto de 1.050.000 equipamentos.
O programa de capacitação digital dos docentes já envolveu até ao momento 64 mil professores e no domínio dos conteúdos, disse também o ministério ao SAPO TeK, está concluída a produção de recursos digitais mais específicos para o 1.º ciclo nas áreas da língua portuguesa, matemática e estudo do meio. Está agora em fase de desenvolvimento um programa de produção de recursos para todo o currículo do ensino básico e secundário, financiado pelo PRR.
O Ministério lembra ainda que em simultâneo estão a ser preparados concursos para aquisição de recursos educativos digitais “para todas as cerca de 330 disciplinas do currículo, bem como para aquisição de Laboratórios de Educação Digital que serão distribuídos pelas escolas EB 2,3 e Secundárias”.
Estes laboratórios foram pensados para criar condições adequadas ao desempenho de atividades na área da programação, da robótica, apoio à disciplina de Tecnologias de Informação e Comunicação e outras, onde o recurso a equipamento tecnológicos e científicos é habitual e as salas de aula tradicionais têm poucas condições para responder.
Em entrevista recente à Lusa, João Costa, Ministro da Educação, adiantava no arranque do ano escolar que os laboratórios vão ser instalados nas escolas durante este ano letivo. Em março, numa nota enviada às escolas, o ministério já explicava que as duas medidas estavam em preparação, tal como outra componente fundamental do programa de modernização: a atualização da capacidade das redes das escolas, que vão passar a suportar um tráfego de dados digitais cada vez maior.
As metas definidas no PRR, que reserva 500 milhões de euros para a educação, apontam para o alargamento da conectividade da Rede Alargada da Educação até 300 Gbps e para a ligação de, pelo menos, 90% das escolas a esta rede com uma capacidade mínima de 1 Gbps.
Em simultâneo está também a avançar o programa de desmaterialização dos manuais digitais, que já chegou a 68 agrupamentos de escolas/escolas não agrupadas, trazendo para o piloto “mais de 11 mil alunos que, diariamente, usam o computador portátil, cedido pela escola, como ferramenta de trabalho, acedendo a manuais digitais e a outros recursos que permitem um trabalho continuado de utilização das ferramentas digitais para desenvolverem as suas aprendizagens”, sublinha o gabinete de João Costa.
Fazer chegar a mudança a todas as escolas vai ser o grande desafio
A Associação de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, olha para as mudanças em curso com expectativa, considerando que o “grande desafio para os próximos anos vai ser estender esta evolução positiva a todas as escolas e turmas”.
Filinto Lima, presidente, reconhece que o processo de ensino/aprendizagem está a ser enriquecido. Com os professores a disporem de outros instrumentos de trabalho, os alunos vão ficar mais motivados, a saúde mais acautelada (com o peso das mochilas a diminuir) e o impacto ambiental também será importante.
“Contudo, em algumas situações é premente reforçar o sinal de Wi-Fi nas escolas, para que o professor não tenha de levar para as suas aulas um plano A (com recurso aos meios digitais) e o plano B (prevendo a hipótese de não existir net ou esta cair)”, sublinha.
O responsável também destaca que para adaptar as metodologias de ensino ao novo paradigma “a formação dos professores e o seu acompanhamento são estratégias fundamentais e impulsionadoras no sucesso do programa” e aponta finalmente a questão da manutenção dos equipamentos digitais. É uma tarefa que carece de recursos humanos “por isso é necessário dotar as escolas de um técnico de informática ou alguém especializado, sob pena dos computadores e outro material se avariar e não ser consertado”.
“O Ministério da Educação deverá apoiar as escolas mais necessitadas e, na minha opinião, promover que o seguro escolar (ou outro tipo de seguro) cubra o material digital que facultou em regime de empréstimo, quer aos alunos quer aos professores”.
As escolas estão a funcionar como um “entreposto logístico”, como lhe chama Jorge Dias, diretor do Agrupamento de Escolas do Freixo, que partilha a experiência das três escolas básicas deste AE no concelho de Ponte de Lima. A escola, que tem uma aposta de longa data n área da tecnologia, recolhe e envia os computadores com problemas para reparação, recebe-os e entrega-os de volta aos alunos.
“Todos os dias recebemos computadores para reparação” com problemas que podem ir desde um parafuso que saltou, a um carregador que não carrega, às consequências mais graves de uma queda. Esta logística é supervisionada por “um professor que temos sempre atento e por assistentes”, a assegurar uma tarefa que, como se reconhece, tende tornar-se mais exigente à medida que o tempo de vida útil dos equipamentos se for esgotando.
Outra preocupação que tem sido apontada pelas escolas está nas garantias do modelo de empréstimo definido para o programa, que no final do ano letivo exige que estas acautelem a devolução dos equipamentos pelos alunos e a sua manutenção antes de nova entrega, um processo moroso e que tem de ser assegurado por recursos que já eram escassos. O ministério optou por não comentar o tema.
Lições do e-Escola que vale a pena não esquecer
Já vai longe o tempo dos primeiros programas que tentaram massificar a utilização das TIC nas escolas portuguesas, o e-Escola e o e-Escolinha. A realidade de 2022 é muito diferente daquela que existia em 2008, mas é quase impossível não fazer comparações e ignorar o melhor e pior da iniciativa, porque os dois tiveram um impacto considerável.
A JP Sá Couto foi um dos grandes intervenientes no programa, do lado da indústria. Fabricou os Magalhães do e-Escolinha, que ainda lhe estão “pegados” à imagem. Entre várias razões, porque foram a semente de uma mudança sem volta na estratégia da empresa, que hoje tem o negócio quase totalmente direcionado a educação.
Como lembra Jorge Sá Couto, presidente do grupo JP, o e-Escolhinha foi uma “iniciativa pioneira e com uma visibilidade internacional muito elevada, seguida mais tarde por outros países”, mesmo que tenha ficado aquém do esperado no que se refere à utilização nas escolas.
“É interessante verificar que, passada mais de uma década da primeira iniciativa, a própria União Europeia criou um programa muito similar ao que foi desenhado em 2008. Fica a sensação, por um lado, de que fomos pioneiros, mas por outro lado que não soubemos aproveitar um momento único que poderia ter ajudado na transformação digital do nosso país”. Como também destaca o responsável, os países que entenderam bem a mudança e implementaram programas similares, recorrentes no tempo e devidamente seguidos, estão agora a colher os seus frutos”.
Há lições a tirar dos erros do passado que ainda faça sentido referir? Jorge Sá Couto acredita que sim. “A principal lição a tirar é que um programa destes tem de envolver obrigatoriamente a escola, os pais e a sociedade civil”. Tem de ser desenhado não só numa perspetiva de aquisição de equipamentos, mas englobar também uma componente pedagógica, para que a utilização de ferramentas digitais possa ser potenciada na aprendizagem. “Estes programas não acabam quando se entregam os dispositivos, começam exatamente aí!”, destaca o responsável.
O grande desafio começa agora
A Confederação Nacional das Associações de Pais mostra preocupações no mesmo sentido. Também aborda a importância de existir apoio técnico adequado e atempado na gestão de hardware/software e uma rede de internet competente e efetiva em contexto escolar e no domicílio (alunos e professores) para que a escola possa efetivamente ser digital.
Dá ênfase ao tema da formação dos professores, “quer na capacitação digital, quer na integração destas tecnologias em ambiente letivo e não letivo e na adaptação das metodologias de ensino aprendizagem às necessidades dos alunos e às novas tecnologias”, como sublinha a presidente Mariana Carvalho.
A CONFAP vê também como crucial para o sucesso do programa, a capacidade de motivar toda a comunidade educativa para a utilização dos novos meios e metodologias digitais, atendendo às questões de segurança inerentes a uma utilização mais intensiva da internet, e criando as salvaguardas necessárias para diferenciar a utilização dos meios digitais para aprendizagem, da utilização para passatempo/comunicações privadas e divertimento/lúdico.
Mariana Carvalho destaca ainda a importância da consistência na disponibilidade de conteúdos programáticos. “Temos casos de turmas piloto cuja implementação deste programa é já efetiva e em que os alunos e professores já trabalham em autonomia com as ferramentas digitais e como tal espera-se que seja dada continuidade a este trabalho”, refere. É preciso “garantir a continuidade do programa para não se correr o risco de retrocesso nas aprendizagens e autonomia adquiridas”.
A gestão das próprias escolas atravessa uma mudança quase tão profunda quanto a da sala de aula, com a adoção de soluções mais modernas e integradas que podem ter um papel importante na melhor gestão de recursos que são sempre referidos como escassos.
“Quando iniciamos a nossa viagem pelas escolas, rapidamente nos apercebemos que as instituições não dispunham de praticamente quaisquer recursos que as ajudassem a gerir-se de forma integrada, dinâmica e eficaz”, admite Manuela Gomes, operations manager da Codevision, que desenvolveu a plataforma eSchooling, usada por 400 instituições de ensino em Portugal.
A empresa diz que tem encontrado nas escolas por onde passa muito equipamento antigo e software desatualizado, profissionais assoberbados de trabalho, e em falta, e pouca organização. "Verificamos que há muita falta de tempo nas Escolas e, resultante da falta de recursos, uma desorganização imensa que afeta o funcionamento de toda a instituição e também a motivação de todos”.
A falta de literacia digital, sobretudo nas escolas de ensino público, tem sido uma fragilidade para uma adoção mais homogénea e transversal de ferramentas digitais nas escolas. Um problema que a pandemia veio ajudar a colmatar, como também fez com a disponibilidade de recursos nas instituições. “No entanto, ainda é necessária uma maior aposta nestes dois fatores para que seja possível modernizar processos, centralizar informações e promover um trabalho de equipa multidisciplinar entre os vários departamentos”, admite Manuela Gomes.
Mais integração e uso do digital
O eSchooling é um software para a gestão integrada da escola a nível financeiro, pedagógico e administrativo. Dá acesso a indicadores de desempenho sobre diferentes aspetos, como aulas dadas/aprendizagens previstas, adquiridas e não adquiridas, notificação de alterações de agenda/horário, visualização de resultados integrados das avaliações, ou de alunos em risco de chumbo. A empresa garante que o impacto da implementação em algumas escolas chega a ser tão grande que nas semanas seguintes já recebeu várias vezes chamadas das direções escolares, a confirmar se está tudo a funcionar corretamente, porque a informação a que passam a ter acesso lhes dá uma visão muito diferente da que tinham antes.
Apontando de novo o foco à sala de aula, a Porto Editora também reconhece que num passado recente, o maior obstáculo a modelos de aprendizagem mais inovadores “era a ausência de dispositivos adequados (tablets ou computadores portáteis) e a fraca qualidade de acesso à internet, uma situação que tem evoluído muito positivamente, embora subsistam dificuldades em algumas escolas”.
Ainda assim, Rui Pacheco, diretor do centro multimédia do grupo e responsável pela plataforma Escola Virtual, admite que, neste momento, a necessidade mais premente para potenciar todo o investimento já realizado na digitalização da escola é a “capacitação de docentes e alunos para usos mais elaborados do que a mera consulta ou exposição” de conteúdos.
A utilização da plataforma educativa da Porto Editora explodiu em 2020, com a abertura total e gratuita dos serviços a toda a comunidade, durante a pandemia. Atingiu 1,2 milhões de utilizadores e a marca Escola Virtual chegou a ser a segunda expressão mais pesquisada no Google em Portugal, logo a seguir a Covid-19.
Mas esta experiência da pandemia trouxe “tendências de sinais opostos”, admite Rui Pacheco. Se por um lado acelerou a consciência do potencial das soluções digitais e do seu contributo para os processos de ensino e aprendizagem. Por outro, “criou em alguns círculos a falsa ideia de que findo o período mais crítico da pandemia estas soluções seriam dispensáveis, porque só serviam a aprendizagem à distância”.
A abordagem às soluções digitais acabou por isso por não ser, tão cedo quanto poderia ter sido, feita com a consciência de que “a educação é, e será crescentemente, um cenário híbrido, com uma progressiva apropriação de novos instrumentos e tecnologias digitais que coexistirão com recursos ditos “convencionais”, impressos, como os manuais em papel”, defende.
Há 20 anos a trabalhar em conteúdos digitais para a educação, a Porto Editora reconhece por outro lado que, apesar da maior visibilidade e investimento público nos últimos anos na digitalização, há muito que a escola sofre um processo de transformação que tem sido gradual e que já permitiu a milhares de professores e alunos trabalharem com este tipo de ferramentas. Em muitos casos, esse trabalho só não era feito numa escala maior por falta de condições técnicas. “Para a generalidade dos professores, a melhoria das condições de infraestruturas nas escolas vem resolver alguns dos problemas que impediam um maior uso de recursos digitais em ambiente educativo”, garante Rui Pacheco.
A mesma nota positiva deixa João Baracho, diretor executivo do CDI Portugal, que destaca o esforço feito no último ano na formação dos professores e no fornecimento de equipamento informático às escolas. Nem todas as escolas vão conseguir apropriar-se desta mudança ao mesmo ritmo. “Sabemos que existem fatores que dificultam esta atualização, entre os quais a elevada média etária dos professores em algumas regiões , o baixo nível de literacia digital e a falta de pessoal qualificado para poder manter e atualizar todos os sistemas e equipamentos”, admite o responsável do programa Apps for Good em Portugal, que já envolveu 600 escolas.
Ainda assim, “apesar de todas as dificuldades e contrariamente ao que muitos portugueses pensam, o nosso ambiente educativo público tem vindo a ser reconhecido como uma prática exemplar a nível internacional”, garante.
Este artigo integra o Especial Educação: A Escola em Portugal já é digital?
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