A pandemia está, inegavelmente, a transformar (ou será melhor dizer que já transformou?) o modo como vivemos, incluindo nessa premissa a forma como trabalhamos. O escritório passou para dentro de casa, com os vários benefícios que tal cenário pode ter, mas possivelmente com igual número de desvantagens, ou digamos pelo menos “desafios”, tanto para os colaboradores como para as empresas.
Dar resposta às exigências profissionais desde casa sem descurar a família é a “ginástica” diária de muitos portugueses desde há mais de um ano. Já por parte das empresas de TI, o “exercício” passou pela redefinição de processos trabalho, de técnicas de onboarding e de estratégias de engagement.
Um lado e outro não têm tarefa facilitada no novo mundo criado pela COVID-19, mas tudo corre bem quando há esforços concertados.
Andreia Jesus está em casa desde março de 2020. Funding Manager da Glintt Inov, uma área da Glintt destinada a encontrar oportunidades de financiamento público para projetos de maior risco da empresa, diz que a adaptação foi fácil, uma vez que a equipa já estava muito habituada a funcionar à distância.
Chegou a regressar ao escritório no verão de forma “muito soft e revezada, uma vez, duas vezes por semana”. O open space que antes da pandemia teria 20 pessoas em simultâneo, no momento tinha apenas duas ou três e “foi estranho” depois de tanto tempo em casa. “Na verdade, já estava muito habituada à minha ‘cave’, a acompanhar tudo à distância”.
Acrescenta que está confortável com o teletrabalho. Já fazia isso esporadicamente, “uma vez de duas em duas semanas”. Diz que não havia propriamente uma política rígida na Glintt que a obrigasse a ir no escritório, mas achava que devia ir “para o bem da articulação com todos”.
Em casa tem um espaço próprio onde pode estar isolada, a trabalhar tranquilamente. “Agora estou ótima”. Andreia diz “agora”, porque no “antes” os dois filhos de três e seis anos não tinham escola.
“Confesso que de início foi bastante caótico", revela Andreia Jesus. "Tentámos ter rotinas que depois falharam, principalmente na questão dos espaços e dos tempos de silêncio. Estamos habituados a ter algum tempo de concentração sozinhos e as crianças precisam da nossa atenção”
Igualmente com dois filhos, Nuno Martins concorda que tudo ficou mais fácil com o regresso à escola. “Em tempo de confinamento o drama é muitíssimo superior”, considera. “Trabalhar em casa é perfeitamente aceitável, consegue-se fazer essa gestão sem problema, mas em tempo de confinamento é muito mais desafiante e pode chegar a ser desgastante, porque é difícil estarmos concentrados”.
Desafiante (dizemos nós) terá sido o facto de Nuno Martins ter mudado de emprego em plena pandemia. Assume o cargo de Diretor de Information Security da Teleperformance Portugal desde setembro de 2020, depois de ter estado numa empresa de consultoria informática três anos, “e durante 18 anos na anterior”.
Foi uma mudança sem medos, garante. “Se tivermos confiança no trabalho que fazemos não há receios. Sempre fui uma pessoa que agarrei novos desafios, e este foi um desafio muito atraente e mais consentâneo comigo”.
“Chegar” à empresa em plena pandemia
Desde que entrou na Teleperformance, em setembro de 2020, Nuno foi ao escritório “umas oito vezes, no máximo”. O momento do acolhimento quando chegou à empresa foi um deles. A Teleperformance tem um processo de onboarding que é comum a todos os colaboradores e outro, mais especifico, de acordo com as várias áreas, explica. Foi ao escritório porque tinha o acolhimento dos outros diretores e da pessoa a quem responde mais diretamente. Esse momento foi presencial, mas a formação foi toda feita online.
Na última empresa onde esteve antes o tempo era passado a 100% escritório e muito raramente havia reuniões virtuais. “Na altura o desenvolvimento das ferramentas também não era o que temos neste momento. A palavra videoconferência implicava uma sala com equipamentos caríssimos”. Nos tempos que correm tudo se reduz, praticamente, a um computador.
“Estas novas ferramentas vieram democratizar completamente a deslocalização e a desmaterialização dos escritórios”, considera Nuno Martins
O ponto fulcral que se coloca às empresas neste momento de pandemia, para o responsável de segurança de TI, é o modelo de estabelecimento das relações. “A proximidade de um Teams ou de um Zoom e a proximidade humana não são a mesma coisa. Esse para mim é o maior desafio para as organizações, quer na relação com clientes e fornecedores quer na relação com a própria equipa, no alinhamento e preparação dos trabalhos e na parte motivacional”.
Conta que na Teleperformance há reunião às sextas feiras, com meia hora reservada, já pós laboral, para os colaboradores se conhecerem melhor entre si. O mote é “get to know us, get to talk to us, get to ask us”. Pretende ser um momento de descompressão para partilhar qualquer coisa fora da rotina de trabalho, numa tentativa de substituir o muito presencial e nada socialmente distante team building.
“Numa atitude free to join, free to leave, junta-se toda a equipa para falarmos e conhecermo-nos um pouco melhor e tentar criar alguma proximidade, dentro do possível. Falamos dos nossos gostos, hobbies, dos nossos animais de estimação ou de outra coisa qualquer que nos apeteça partilhar”, conta Nuno Martins
Trabalhar à distância com recurso às ferramentas tecnológicas disponíveis também não foi de todo um passo complicado para João Nogueira, acabado de sair de um mestrado em engenharia informática em que comunicou sempre por videochamada. Entrou na Opensoft há cerca de cinco meses naquele que é o seu primeiro emprego, ou seja, ainda não conheceu outra realidade, que não a do teletrabalho.
A “apresentação” em novembro na empresa foi presencial, mas decorreu praticamente sem ninguém. “Estava só quem ia fazer o onboarding e colegas que usam o espaço porque em casa não têm condições”. João diz que deu para ver como era o escritório: “grande e [no momento] vazio e sossegado, que me pareceu espetacular para trabalhar”.
O momento presencial, único até agora, serviu para lhe apresentar a cultura da empresa, falar um pouco de como era antes da pandemia e como é agora e para entregar o equipamento necessário para trabalhar em casa. “Como é o meu primeiro emprego não há aquele choque de sentir a diferença entre o antes e o depois”.
Trabalhar em casa onde e como se pode
Reunir as condições para trabalhar a partir de casa nem sempre é fácil e pode levar o seu tempo. João não tem grandes problemas… tirando os momentos em que ele e a namorada têm videochamadas de trabalho em simultâneo. Nessas alturas alguém tem de levar o “local de trabalho” para a sala de estar, porque “não dá para estar a trabalhar numa coisa e a ouvir outras pessoas falarem de outra coisa”. Muitas vezes até por uma questão de segurança da informação.
Já Nuno Martins não tem escritório, mas conseguiu criar um "canto Teleperformance" próprio, na sala de estar comum lá de casa. Recorreu a um móvel para fazer uma espécie de biombo, que funciona como separador. “Tenho aqui a minha secretária e o meu espaço dedicado”.
Com as outras divisões tomadas pelos restantes “residentes” e com a proibição de ocupação do sitio de descanso por excelência - o quarto -, a escolha de Rute Ablum para trabalhar em casa recaiu na sala de estar. “Mudei de sítio por três vezes. Levei meses, mas comprei secretária, comprei cadeira, decorei o espaço para sentir que o chip é outro quando estou ali, mesmo que seja o mesmo sitio onde janto ou vejo televisão. Só consegui terminar o ‘meu spot’ em setembro, mas passou a fazer toda a diferença”.
Há seis anos na PHC, é atualmente Administradora e Chief Management Officer (CMO). Tem cinco pessoas diretamente ao seu encargo, numa equipa estratégica de advising à comissão executiva, mantendo igualmente a gestão operacional das diretorias de algumas áreas.
Em pleno processo de construção das novas instalações, recentemente inauguradas, a PHC esteve praticamente toda a trabalhar em casa no último ano, incluindo os administradores. “Só as funções consideradas mesmo fundamentais é que estão no escritório e são para aí três pessoas em 200”.
A empresa já tinha uma política de teletrabalho institucionalizada por isso, não foi assim tão difícil, “mas uma coisa é ter uma política de remote work em que se vai para casa quando é preciso e outra é quando somos todos obrigados a ficar em casa todos os dias. Como é que é?”
Por isso Rute revela que houve longas conversas na administração da PHC, com muita leitura e muita pesquisa à mistura, e numa semana foi possível definir uma estratégia base para o teletrabalho imposto pela pandemia. Houve depois aspetos que foram sendo definidos ao longo do tempo, à medida das necessidades.
Aponta que houve uma necessidade muito grande de comunicação por parte dos colaboradores de início, mais em redor das histórias que se ouviam em redor das consequências da pandemia, nomeadamente, de perdas de emprego. A administração decidiu logo que não iria despedir ninguém por causa da pandemia em si e informou os seus colaboradores porque a ansiedade era muito grande.
“O facto de comunicarmos frequentemente e de forma transparente com os nossos colaboradores diminuiu muito a ansiedade vivida. O nível de engagement da PHC esteve o mais alto de sempre no verão do ano passado e acreditamos que isso tenha acontecido devido a este tipo de medidas”.
Destaca ainda que a empresa apostou muito na formação, principalmente aos líderes, aqueles que estariam todos os dias em contacto com as equipas em casa. “As 200 pessoas e os 40 líderes PHC não são todos iguais, por isso tivemos de os preparar e de nos preparar”, sublinha.
Também foi dada muita formação sobre a gestão pela entrega e não pela observação. “Estamos muito habituados a olhar se o outro está a trabalhar ou não o que não quer dizer rigorosamente nada…”, refere. Apostou-se igualmente na formação sobre questões relacionadas com a saúde mental, nomeadamente a atenção a situações de risco de burn out.
“Os líderes mais do que nunca têm de ver além do necessário, têm de estar muito atentos e isto ensina-se”, considera Rute Ablum. “Muitas vezes as pessoas à beira de um burn out não se queixam ou nem percebem. Chegámos a “obrigar” colaboradores a ‘tirar férias já’”
A chave para o momento vivido atualmente é uma boa comunicação, garante a CMO, “nas suas várias formas: da administração com os lideres, do CEO com o resto da PHC, dos lideres com as suas equipas, ter constantemente a “porta aberta” para responder e ajudar a resolver todo o tipo de dúvidas e ouvir os colaboradores com o objetivo de alinhar melhores estratégias e comportamentos mais saudáveis”.
Cresce a produtividade, logo aumentam as horas de trabalho?
Um estudo recente dá conta de que a produtividade aumentou desde que o teletrabalho foi instituído como regra sempre que possível, mas as mesmas conclusões apontam para que tal possa ter acontecido a par do crescimento do número de horas que as pessoas passam a trabalhar. Uma hipótese que não perece de todo desprovida de sentido.
Agora já está mais “regulada”, mas Andreia Jesus confessa que inicialmente não tinha horário. “No começo era quase uma loucura: parecia que toda a gente se tinha transformado em máquinas e que tínhamos necessidade de provar que estávamos em casa, mas estávamos a trabalhar”.
Atualmente tem algumas reuniões definidas com a pessoa com quem trabalha diretamente e com os restantes elementos da equipa da Glintt Inov. Primeiro eram todos os dias e depois passaram a ser mais espaçadas. “São duas vezes por semana, mas até achamos que começámos a partilhar muito mais nestas menos reuniões do que antes em mais”. A sensação é a de que se começou a trabalhar “bastante melhor” e a “comunicar mais”, mesmo estando à distância.
Como a pessoa com quem trabalha mais diretamente é nova na função e na empresa, há sempre algum contacto diário, “seja um Teams, uma chamada ou o envio de uma mensagem”.
“A distância acabou por contribuir para eliminar os tempos mortos, aqueles tempos menos produtivos. Estamos mais focados”, considera Andreia Jesus
Na Opensoft, João Nogueira tem algumas horas do dia em que tem obrigatoriamente de estar “ligado”, mas o restante horário de teletrabalho fica por sua conta. Diz que gosta muito do que faz e “não se cansa de trabalhar horas seguidas no momento”, mas nas formações dadas pela empresa foi alertado para o risco de burn out.
Há por isso “regras” por parte da chefia direta para não se ultrapassarem determinados períodos de tempo diários a mais. “Com o passar do tempo vamos acabar por ficar mais cansados a fazer aquilo que costumávamos fazer normalmente. As horas todas de trabalho que fazemos a mais de seguida vão acabar por prejudicar a nossa produtividade depois”.
Acredita que grande parte das pessoas trabalhe mais do que é suposto. Na maior parte dos casos, quando se sai do escritório, o trabalho fica lá, mas o mesmo não acontece quando se trabalha a partir de casa.
“Em casa muitas vezes ‘saímos’, mas deixamos o computador em suspenso e, volta e meia, vamos espreitar, lemos uns emails, fazemos mais qualquer coisa para ficar logo tudo resolvido", diz João Nogueira. "De repente estamos com 10 ou 11 horas de trabalho e não damos por isso”
Vantagens há com certeza, desvantagens também
A incapacidade de afastamento das obrigações profissionais pode ser um dos grandes problemas do teletrabalho para muita gente na opinião de João Nogueira. “Como estamos sempre a trabalhar em casa não temos aquele ‘afastar’, não separamos os dois momentos”, considera o engenheiro informático da Opensoft.
O esbatimento entre o profissional e o pessoal também é apontado por Nuno Martins que acha que se não houver uma gestão de tempo muito mais assertiva “trabalhamos muito mais”. O responsável de segurança da Teleperformance também considera que pode haver um problema na gestão das expectativas da “velocidade de resposta”. “Em teletrabalho é difícil percebermos a disponibilidade do outro no momento e vice-versa: o facto de eu estar disponível agora, não quer dizer que o mesmo se passe com os meus colegas".
Já Andreia Jesus aponta o stress de tentar “fazer tudo o que nos compete enquanto pais e tudo o que nos compete enquanto profissionais porque é impossível, basicamente”. Mas há vantagens. Para a Funding Manager da Glintt Inov o tempo para estar e dar mais atenção à família é uma das maiores. No primeiro confinamento teve “finalmente” tempo para ir com a filha para a rua para que aprendesse a andar de bicicleta, referiu.
“Apesar de toda esta confusão e dificuldade em adaptar o ritmo de trabalho às necessidades com as crianças, se calhar em mais nenhuma outra altura vamos ter oportunidade de ver crescer os nossos filhos como tivemos agora, porque normalmente passam o dia na escola”, admite Andreia Jesus
Não haver a separação entre a vida de trabalho e a vida pessoal é difícil, considera igualmente Rute Ablum. "Às vezes estamos nós em flow total e lá vem um dos filhos a chamar pela mãe".
Mas sem os filhos, “com as condições reunidas”, tudo o que envolva concentração é algo que faz muito melhor em casa do que no escritório, defende. “O teletrabalho permite fazer a gestão dos nossos períodos de energia e de onde a gastar”. É ótimo para o deep work, defende, mas o brainstorming será sempre melhor em presença. Além de que estar fisicamente com outras pessoas é importante, acrescenta.
Faz falta a Rute e também a Nuno, que aponta a privação de contacto humano como desvantagem número um do teletrabalho, embora a gestão pessoal do tempo seja um benefício importante.
Pensa que quando for declarado o fim da pandemia, o modus operandi de agora vai estar de tal forma embebido que muito provavelmente não haverá regresso. “Porque o ser humano é de hábitos quando as pessoas se ajustam a esta nova normalidade, esquecem o que ficou para trás".
De qualquer forma não será “one size fits all” claramente. Nem todos estarão confortáveis com o modelo 100% em casa, outros não estarão confortáveis com o modelo 100% escritório. “O importante é a organização ter isso em consideração e ter sempre as ferramentas para apoiar os seus colaboradores independentemente da situação”, defende.
O ideal, parecem concordar todos, será um modelo híbrido, “num meio-meio” entre o trabalho presencial e o trabalho virtual.
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