Por Alisson Avila (*)

Portugal assume a presidência rotativa do Conselho da União Europeia no próximo mês de janeiro com vários desafios e oportunidades, capazes de fazer desta gestão de seis meses uma temporada memorável. E no que diz respeito à legislação digital do mercado comum, a azáfama já está garantida: é a gestão portuguesa que vai lidar com os primeiros desdobramentos rumo à implementação de novas regras que substituirão medidas criadas há 20 anos - ou seja, uma quase-eternidade se comparadas ao dinamismo deste mercado. Formalmente apresentadas nesta terça-feira (15), o Digital Services Act (DSA) pretende introduzir novas regras em áreas que vão da moderação de conteúdo, à publicidade online e à transparência da configuração de algoritmos, enquanto que o Digital Markets Act (DMA) pretende antecipar práticas consideradas ilegais e disponibilizar uma ferramenta de auditoria junto a empresas que tenham mais de 10% de mercado dentro do espaço económico comum. Ambas as proposições podem ser conhecidas na íntegra (por enquanto, somente em inglês) no portal do Conselho Europeu.

É sabido desde antes da sua posse que a atual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, deseja modernizar a legislação digital do mercado comum. Algo que não poderia ter ficado mais claro, por exemplo, no seu recente discurso de abertura da Web Summit 2020 - um evento definitivamente global, mas cuja narrativa de arranque foi decisivamente europeia. De forma ambiciosa, a política alemã abriu o maior encontro tecnológico do mundo reconhecendo que ainda há muitos obstáculos para o empreendedorismo digital na União Europeia e que muitas startups acabam por abandonar o espaço europeu para assegurar o seu crescimento. Por isso, reiterou três fundamentos de mudança que, no seu entendimento, farão da UE a líder global em excelência digital nos “anos 20" que aí vêm. Tais fundamentos afirmam que as práticas e valores (europeus) do mundo offline devem ser respeitados também no online; que as empresas tenham um conjunto único de regras digitais fundamentais em toda a União Europeia; e que tenham igualdade de condições e de oportunidades.

Todos estes princípios estão refletidos na legislação proposta. O DSA pretende fortalecer o mercado único da UE, facilitar a expansão de startups e scale-ups através de regras unificadoras no espaço económico e esclarecer as responsabilidades e obrigações dos serviços digitais, enquanto que o DMA vai abordar diretamente o poder económico das grandes plataformas online com a intenção de coibir (e exigir) certos comportamentos mesmo antes que os reguladores tenham evidências de danos reais no mercado.

As propostas apontam benefícios inquestionáveis para a sociedade e a democracia na Europa (redução das fake news, produtos e serviços ilegais e hate speech), mas ainda é cedo para saber quais serão as suas implicações sistémicas no quotidiano das pessoas e, sobretudo, dos negócios. Estes são desafios épicos em termos políticos, legais e geocorporativos, capazes de gerar impacto tanto nas grandes empresas tecnológicas, como nas startups early-stage.

Embora a Comissária Europeia para a Concorrência, Margrethe Vestager, tenha afirmado (também) no Web Summit 2020 que este debate “não é sobre de onde vens, mas sobre o que fazes e o papel que tens no mercado”, a discussão potencialmente geopolítica também já está posta. O Center for Strategic & International Studies (CSIS), posicionado no topo do ranking norte-americano da Global Go To Think Tank Index, publicou no último mês de novembro o estudo "Digital Services Act, Digital Markets Act e a nova ferramenta de concorrência - Iniciativas europeias para enfrentar empresas de tecnologia dos EUA", cuja abordagem evidencia como as diferentes perspectivas e interesses internacionais sobre o tema se farão ouvir com um enorme eco enquanto Portugal lidera a presidência temporária do Conselho Europeu.

Já o estudo "O Impacto do Digital Services Act em business users", divulgado em outubro passado pela consultora inglesa Oxera em parceria com a associação internacional Allied for Startups, sugere um outro ângulo: o de que os empreendedores digitais emergentes da Europa possuem uma visão de defesa da sua autonomia e livre iniciativa similar à das big techs norte-americanas. Após recolher a perspectiva de 1,000 startup & SME founders dos segmentos de viagens e turismo, gig economy e indústria criativa na Alemanha, Bulgária, Irlanda e Espanha, o estudo conclui que o DSA poderá alcançar resultados positivos caso

1) continue a limitar a responsabilidade direta das plataformas por conteúdos e produtos disponibilizados por terceiros;

2) permita que as plataformas tomem as suas próprias ações voluntárias para detectar conteúdo prejudicial ou ilegal;

3) elabore obrigações com penalidades conhecidas, de modo a aumentar a confiança dos clientes e fornecer segurança jurídica;

4) expanda a consistência das regras aplicadas por toda a UE;

5) evite sobrecargas de informações desencorajadoras aos utilizadores, como a verificação detalhada de listas de produtos, qualificações ou direitos autorais de conteúdo;

6) não prescreva soluções de governança que impeçam as plataformas de implementar soluções técnicas escaláveis, como ferramentas de inteligência artificial;

7) evite regras baseadas no tamanho de cada plataforma, como números de utilizadores ou o valor das transações facilitadas.

Estas são perspectivas tão legítimas quanto potencialmente fraturantes perante as intenções do Conselho da UE, e que alimentarão um debate definitivamente aceso num momento de protagonismo Português na sua presidência rotativa. Fica assim a pergunta: de que forma a posição portuguesa pró-inovação e transformação digital, expressada de forma tão favorável ao longo dos últimos anos, será utilizada como parâmetro na gestão dos desdobramentos do Digital Services Act e do Digital Markets Act? Um tema que acompanharemos de perto ao longo de todo o ano de 2021.

* Co-Founder, Communication & Knowledge Principal da Beta-i