A aplicação Stayaway Covid, que tem como objetivo alertar as pessoas quando estiveram em contacto com infetados da doença foi lançada oficialmente no dia 1 de setembro de 2020. Numa altura em que as vacinas faziam apenas parte de um desejo coletivo de todos, e os investigadores corriam contra o tempo para encontrar soluções, as apps de contacto eram a principal “arma” contra o vírus. Um ano depois, com praticamente 70% da população vacinada, ninguém fala da app Stayaway Covid. Ou pelo menos, quase ninguém.
Lembrando que a pandemia ainda não acabou e os casos de contágio continuam a somar-se diariamente, a Associação D3: Defesa dos Direitos Digitais, faz questão de “comemorar” o primeiro aniversário da aplicação com o lançamento do Relatório Público Stayaway. Trata-se de uma análise a todo o processo da app, do seu ciclo de vida, daquilo que correu mal, numa reflexão de como se poderia fazer melhor para a próxima vez.
“Quando alguns ainda insistem em abanar o cadáver e alegar que está de boa saúde, sentimos que é bem altura de realizar a autópsia. Como ninguém o fez ainda, metemos mãos à obra. Este documento é o resultado de mais de um ano de trabalho a reunir estudos, dados e notas de imprensa, analisá-los e tirar conclusões de toda esta experiência”, salienta Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3 e coordenador do documento, baseado num estudo a nível europeu da Liberties.eu, adaptado ao contexto de Portugal. O objetivo foi claramente quebrar o silencio daquele que parece ser agora um “assunto tabu” na esfera pública, sugerem os autores.
Nas suas conclusões, a D3 começa por dizer que a aplicação não funcionou como era intenção e os utilizadores perceberam isso. “Muita gente constatou que o seu telemóvel não lançou a devida notificação quando alguém que sabiam ter estado em contacto introduziu o seu código”, salienta o relatório, acusando o discurso oficial de ainda assim se manter a confiança na eficácia total da mesma, sem admissão de falhas técnicas.
A polémica da “obrigação de instalar a app”
Uma das “facadas” na aplicação foi quando António Costa colocou na mesa o seu uso obrigatório durante o estado de calamidade, propondo depois multas até 500 euros para quem não a utilizasse, mesmo que depois afirmasse que “ninguém iria fazer revistas” para confirmar quem a tinha instalado. A iniciativa fez estalar o verniz com reações negativas, acusações de ser inconstitucional, antiética e antidemocrática, não demorando muitos dias para que o Primeiro-ministro recuasse nas decisões de a tornar obrigatória. “No entanto, os proponentes da app insistiram em culpar os médicos, uma classe profissional profundamente agastada pela crise pandémica e, concluímos, sem qualquer responsabilidade no fracasso da aplicação”, destaca a D3 sobre o assunto.
A associação acusa ainda a Google e a Apple de substituir os Estados na definição da arquitetura de uma medida de saúde pública, naquele que diz ser um precedente preocupante “na medida que constitui uma efetiva privatização de uma parte importante dos esforços de combate à pandemia”. A versão portuguesa da aplicação foi desenvolvida pela INESC TEC baseado na API criada pelas gigantes tecnológicas.
A D3 recorda ainda o episódio da falha de segurança grave nos equipamentos Android, que permitia o acesso indevido a dados pessoais dos utilizadores. Uma vulnerabilidade descoberta no final de abril e que esteve ativa ao longo de quase todo o ciclo de vida da app, levando a associação a pedir que se suspendesse imediatamente a aplicação Stayaway Covid. “A Google tinha conhecimento dessa falha, meses antes da sua descoberta por parte de investigadores independentes. Não há nota de qualquer auditoria ou investigação por parte do Governo ou outra autoridade, e a CNPD havia alertado para o risco deste cenário antes até do lançamento da aplicação”, reforça a associação.
Relativamente à alteração legislativa destinada a facilitar algumas funcionalidades da aplicação, a D3 diz que esta chegou muito tarde, meses depois dos relatos das desinstalações em massa, o que originou uma oportunidade perdida de fazer a diferença em tempo útil. “No entanto, as culpas desse atraso foram apontadas à CNPD e não, como deveria, ao poder legislativo” acrescenta.
Durante uma intervenção no congresso do APDC (Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações), o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, viria a admitir que a aplicação Stayaway Covid não funcionou como era esperado em Portugal, e que se deveriam tirar ilações sobre o mesmo, visto que na Alemanha e Suíça, as respetivas apps de rastreio foram uma arma essencial contra a pandemia.
A associação vai mais longe e diz que quando a app já estava moribunda, sem um único código introduzido em vários dias, “os seus proponentes e o Governo insistiam na sua promoção junto dos meios de comunicação. Ainda hoje encontramos anúncios a incentivar à instalação da app nos transportes públicos”. Em abril, Rui Oliveira, administrador do INESC TEC referia ao SAPO TEK que a aplicação Stayaway Covid ainda poderia ser muito útil no combate à pandemia, mesmo num cenário de início da vacinação, afirmando que “estamos longe de poder baixar a guarda e não confundir vacinado com imunizado".
“A experiência Stayaway foi um fracasso total da abordagem tecno-deslumbrada que exalta as apps e as ‘soluções inovadoras’, desprezando as pessoas, a legislação e qualquer contributo por parte de outra área que não a técnica, como as ciências sociais”, reforça Ricardo Lafuente. Diz ainda que é urgente elevar o debate sobre o digital, como esta molda e afeta a estrutura social e a nossa integridade mais íntima, “para evitar ingenuidades que motivaram boa parte dos erros identificados em todo este processo”.
O Relatório Público Stayaway pode ser consultado na sua íntegra, onde são aprofundados os papeis da Google e Apple, os episódios que marcaram o lançamento da aplicação, uma análise ao que correu mal, mas também uma reflexão daquilo que poderá ser feito numa próxima vez.
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