O tema das cidades inteligentes é antigo. Há muito que se fala nele e há muito que se desenvolvem projetos em Portugal sob este chapéu, mas serão os resultados alcançados tão abrangentes como a soma das iniciativas já realizadas? Quem está no mercado admite que não, mas também reconhece que estamos a chegar a um momento de viragem, que traduz um misto de necessidade, maturidade da tecnologia e experiência acumulada. Em conjunto, a combinação destes fatores começa a abrir caminho a visões mais integradas do conceito e a abordagens mais orientadas para o médio/longo prazo. Mas o caminho ainda é longo.
“O conceito de Smart Cities deveria ter como princípio uma filosofia para nortear o desenvolvimento urbano usando tecnologias de comunicação e informação, assim como a Internet das coisas (IoT), para que os bens e recursos de uma cidade, ou centralidade urbana, fossem otimizados e bem geridos em benefício do cidadão”, define Miguel Amado, partner da EY e Government and Public Sector Leader.
O cidadão devia estar no centro de todas as decisões e a tecnologia no fim da cadeia, como meio para alcançar um fim. “Infelizmente ainda se vê muito a dinâmica contrária de termos a tecnologia a empurrar esta transformação e não as necessidades de quem necessita dos serviços e recursos em questão a puxá-la”. Na maior parte dos casos, “não há um plano diretor que permita guiar os investimentos necessários e medir o seu real impacto. Acabamos por ter muitas iniciativas desgarradas, ao invés de uma abordagem holística, o que dificulta a sustentabilidade do conceito de Smart City em si”.
Dito isto, e olhando para a realidade no terreno, a área onde a EY identifica um menor número de projetos é precisamente a do “planeamento do caminho para Smart City”, com a definição de KPIs que possam medir o progresso e impacto das iniciativas, identificar e captar as fontes de financiamento mais indicadas e desenhar formas de monetizar dados e assegurar a sustentabilidade das soluções a implementar.
Por sua vez, as áreas mais trabalhadas pelas cidades são as da mobilidade e energia, por serem também propensas a resultados mais imediatos e mais fáceis de financiar. A implementação de plataformas também tem vindo a crescer, “embora na maioria dos casos sem use cases que permitam retirar os melhores dividendos desses investimentos”, defende ainda Miguel Amado.
Gestão mais eficiente de recursos e mobilidade dominam projetos
Nos últimos meses, aliás, foram muitos os anúncios de autarquias que avançaram com projetos para uma gestão mais eficiente da água ou energia, ou para a gestão inteligente de operações urbanas, como a recolha de lixo, confirmando que os temas da sustentabilidade têm sido um dos grandes motes para projetos.
O alinhamento com os objetivos das Nações Unidas é comum a várias iniciativas. A noção da oportunidade de poupança será transversal a todas, e os números mostram porquê. A transição da iluminação pública para LED, por exemplo, pode representar poupanças superiores a 50%, ou mesmo de 80%, no caso dos sistemas de iluminação inteligente.
O entusiasmo em torno do tema das Smart Cities é por isso grande. “Deparamo-nos sempre com líderes (Presidentes de Câmara, Vereadores, Técnicos altamente qualificados) muitíssimo interessados e conscientes da importância e valor acrescentado no investimento em metodologias Smart City, para atingir objetivos de desenvolvimento sustentável”, confirma a Ubiwhere, que tem algumas soluções nesta área já implementadas em municípios.
“Nas autarquias há uma preocupação clara com os aspetos de sustentabilidade, seja por uma visão de longo prazo, seja por necessidades de curto prazo, como o aumento dos preços da energia, os efeitos de um ano de seca, ou a prevenção de incêndios”, refere também João Ricardo Moreira, administrador da NOS e responsável pelo Centro para a Transformação das Empresas da operadora, com várias soluções inteligentes, nesta e noutras áreas, implementadas em diferentes cidades.
Entre os projetos que a operadora tem levado ao terreno, com diferentes parceiros tecnológicos, destacam-se também as iniciativas na área da mobilidade, ou do turismo. A mobilidade “alinhada com preocupações de sustentabilidade, mas sobretudo de qualidade de vida das pessoas”. No turismo, enquanto “ferramenta de promoção dos territórios” e através da criação de novos conteúdos e aplicações para enriquecer a experiência e facilitar a vida a quem visita as regiões.
João Moreira também reconhece que em muitos locais do país ainda persiste uma estratégia orientada para a resposta a problemas pontuais, mas sublinha que o oposto também existe, “com visões já muitíssimo completas” do que é uma smart city e do caminho para lá chegar, a que se junta uma maturidade da tecnologia e das experiências com pilotos e que têm aberto caminho às soluções com mais escala, que muitas autarquias estão já a considerar.
O gestor atribui mais as discrepâncias no ritmo de evolução dos projetos e no âmbito, às assimetrias entre regiões, de tamanho, recursos ou necessidades, num país que se divide em 308 municípios - e tendo em conta que a escala é fundamental para justificar o investimento em alguns projetos e maximizar resultados - do que à falta de conhecimento ou vontade dos decisores.
Onde estamos, para onde vamos?
Olhando para o caminho percorrido até aqui, a Deloitte identifica várias fases na abordagem ao tema das Smart Cities em Portugal. Uma primeira impulsionada pelos fundos europeus (em particular o Horizonte 2020), que “permitiu a algumas cidades seguirem as tendências tecnológicas traçadas por outras grandes cidades europeias e entender os conceitos base inerentes às diferentes vertentes de uma Smart City”.
Daqui terão nascido sobretudo projetos tecnológicos, tipicamente verticalizados em áreas como a energia, iluminação, mobilidade ou segurança, materializados em pequenos pilotos. “Infelizmente, um grande número destes já não se encontra em funcionamento por falta de manutenção”, sublinha Ricardo Martins, Associate Partner da consultora.
Várias cidades terão entretanto tentado massificar o conceito de Smart City, a partir de um desses verticais, ou com investimento direto ou com investimento privados, no modelo ESCO (parcerias para programas de eficiência energética). Por esta via terão nascido vários projetos “que cobrem municípios e até regiões inteiras, mas que acabam por estar apenas centradas na implementação de tecnologia e na maior parte das vezes com um único vertical, o da iluminação pública inteligente”.
A Focus BC insere a estratégia destas cidades num nível intermédio, dos três níveis que identifica nos projetos nacionais de Smart Cities. Num primeiro nível de maturidade estarão as autarquias ainda na fase de digitalização de alguns processos de negócio. Numa fase intermédia aquelas que estão a apostar em determinados verticais para aumentar a eficiência, reduzir custos e prestar melhores serviços aos cidadãos.
“Num terceiro nível de maturidade estão as autarquias que já estão a avançar com uma plataforma de Inteligência Urbana, capaz de dar inteligência aos sensores e integrar todos os verticais, para criar informação e conhecimento de apoio à gestão e à implementação de políticas públicas”, acredita Vasco Pinheiro, Managing Partner Focus BC.
Só 6% das cidades portugueses no pelotão da frente
Já não são raros os exemplos de municípios orientados para esta terceira fase. São menos aqueles que já conseguem extrair daí resultados significativos. Um estudo encomendado pela Vodafone (Opinion Matters – Fit for the Future Cities: How technology can accelerate sustainable change) e divulgado em setembro concluía que só 6% das cidades portuguesas seguem no estádio mais avançado de desenvolvimento da sua Smart City. A maior parte (45%) integram a categoria Pathfinder. Já começaram a adotar soluções, mas deparam-se com um conjunto de limitações que influenciam o ritmo e a profundidade dos projetos.
“As barreiras identificadas pelo estudo – como a falta de fundos; a legislação; a necessidade de existir infraestrutura adequada; preocupações com privacidade e segurança; complexidade dos procedimentos de aquisição; falta de estratégia e competências digitais – são comuns à generalidade dos países estudados, incluindo Portugal”, admite Mafalda Alves Dias, diretora de grandes contas e sector público na Vodafone Portugal.
De um modo geral, aliás, o estudo mostrava que os atrasos nesta matéria, face à ambição dos planos europeus, verificam-se por toda a região e podem comprometer numa década a meta da UE, que quer chegar a 2030 com 100 cidades inteligentes e neutras em carbono. Três são portuguesas: Lisboa, Porto e Guimarães.
Sete em cada 10 cidades, nos 10 países onde o estudo foi realizado, têm planos para investir em soluções inteligentes e mais de metade diz que esse investimento vai posicionar-se entre os 2 e 10 milhões de euros, durante os próximos três anos. Resta saber se será suficiente para acertar o passo com as melhores expectativas dos decisores. “Apesar da orientação e motivação dos líderes das cidades e ainda que se encontrem amiúde fontes de financiamento para suportar a transição digital, persistem barreiras regulamentares que restringem a capacidade de inovação das cidades”, identifica também a Ubiwhere.
A tecnológica de Aveiro dá o exemplo do desafio que continua a ser criar um caderno de encargos para projetos de inovação. “Torna-se muito difícil estabelecer um preço e um conjunto de resultados, quando estamos a falar de trabalho associado à inovação e experimentação, cujos processos e resultados não são tão previsíveis como acontece com a entrega de uma quantidade de bens tangíveis”. A empresa fala também na “falta de uma linha de financiamento específica para a modernização das cidades e consequente alimentação daquilo que chamamos smart cities”.
O “empurrão” que os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência podem dar nesta área é genericamente bem visto, mas não será suficiente. “Programas como o PRR ou o Portugal 2030, têm vetores alinhados com os objetivos de muitos projetos de Smart Cities, que claramente suportam a capacidade de investimento nestas áreas, constituindo assim uma oportunidade única para as autarquias conseguirem recursos financeiros para projetos como estes”, reconhece João Carvalho, head of sales, business development & alliances da Kyndryl Portugal.
Mas, se é verdade que os fundos que vão dar suporte aos vários temas de infraestruturas, no centro do PRR, também beneficiarão as cidades, “para evoluir enquanto Smart Cities estas necessitam de investimento direto em planeamento, governance, gestão da mudança e na definição das estruturas de dados e este não virá, seguramente, do PRR”, lembra Ricardo Martins da Deloitte.
Entretanto, a Estratégia Nacional para as Smart Cities é aguardada com expectativa. “O desenvolvimento e implementação efetiva da Estratégia Nacional de Smart Cities, procurando criar as bases para um planeamento integrado de projetos de Smart Cities, definindo práticas e princípios comuns aplicáveis a todas as iniciativas e permitindo a sua replicação a nível nacional constitui uma ferramenta essencial no desenvolvimento efetivo deste tipo de projetos”, sublinha João Carvalho da Kyndryl.
No entanto, ainda será preciso esperar algum tempo para conhecer exatamente que linhas orientadoras e metas traçará o Governo nesta matéria. Fonte oficial da secretaria de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa adiantou ao SAPO TEK que o documento só será publicado em 2023 e referiu que é cedo para adiantar detalhes sobre o modelo final, que sairá dos encontros que ainda decorrem com as diferentes partes interessadas no processo. Sabe-se que devem ser definidas metas concretas em algumas áreas. Falta saber quais e em que medida vão ou não fazer descolar os objetivos nacionais, daqueles que a Europa genericamente já fixou.
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