A proposta foi ontem apresentada pelo Primeiro Ministro António Costa depois de aprovada em Conselho de Ministros e faz parte de um pacote de medidas desenhado para enfrentar o estado de calamidade relacionado com a crise de saúde pública do novo coronavírus, e o aumento do número de casos a que assistimos nos últimos dias. Associada à obrigatoriedade de uso de máscaras e da aplicação de rastreamento de contactos de risco de COVID-19 está também a aplicação de multas que podem chegar aos 500 euros.

Mas o que está em causa? Entre novas restrições aos ajuntamentos de pessoas na via pública e em estabelecimentos comerciais, a reorganização do trabalho nas empresas com 50 ou mais trabalhadores e os horários das áreas de serviço, o Governo propõe a medida que impõe o uso obrigatório da máscara na via pública e a utilização da aplicação STAYAWAY COVID em contexto laboral ou equiparado, escolar, académico, nas forças armadas e de segurança, e na Administração Pública, assim como a comunicação de teste positivo na app, como indica o comunicado do Conselho de Ministros.

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A Proposta de Lei 62/XIV  deu entrada na Assembleia da República e tornou mais claros alguns pormenores que não estavam bem definidos no comunicado do Conselho de Ministros, esclarecendo as multas a aplicar e a fiscalização do cumprimento das obrigações pela Guarda Nacional Republicana, à Polícia de Segurança Pública, à Polícia Marítima e às polícias municipais.

No artigo 4º define-se que a aplicação “é obrigatória, no contexto laboral ou equiparado, escolar e académico, a utilização da aplicação STAYAWAY COVID pelos possuidores de equipamento que a permita”, e explica-se que “o utilizador da aplicação STAYAWAY COVID que tenha um caso confirmado de COVID -19, nos termos definidos pela DGS, deve proceder à inserção na referida aplicação do código de legitimação pseudoaleatório previsto neste sistema, que deve figurar do relatório que contenha o resultado do teste laboratorial de diagnóstico”.

Surpresa com a decisão e o efeito no crescimento dos números

A divulgação das medidas gerou reações imediatas e o SAPO TEK procurou os comentários das várias entidades que já tinham levantado dúvidas em relação à aplicação, e que não demoraram a reagir negativamente quanto a esta nova medida.

Ainda ontem fonte do INESC TEC, a entidade responsável pelo desenvolvimento da aplicação, admitiu ao ECO que foi apanhada de surpresa com a proposta. Já hoje no programa da TSF dedicado ao tema, Rui Oliveira, administrador do INESC TEC, referiu que não tinha conhecimento desta iniciativa do Governo, e realçou que desde o início a aplicação tem na sua base a premissa de ser de utilização voluntária, na instalação, utilização e partilha dos códigos, o que está definido nos termos de utilização.

Segundo os números de hoje, a app já foi descarregada 1.683.042 vezes, e desde ontem o número cresceu significativamente com quase 180 mil novas instalações.

O crescimento pode estar relacionado com todo o debate à volta do tema mas também com o efeito da divulgação da Federação de Futebol sobre a app durante o jogo da Seleção, já que o durante o primeiro jogo contra a França também se registou um aumento dos downloads, refere ao SAPO TEK fonte do INESC TEC.

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O número de códigos introduzidos é que continua a ser baixo, apenas 179 no total,  numa altura em que o número de casos positivos já ultrapassou os 2 mil. Esta é uma das preocupações do Ministério da Saúde e ainda esta semana o presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde disse que estão a ser desenvolvidas várias estratégias para reforçar a comunicação com os médicos.

Contestação da legalidade e ética da medida, e ameaça de providência cautelar

A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que tinha feito um longo documento com várias preocupações depois da análise da avaliação de impacto da aplicação, é clara ao dizer que “Impor por lei a utilização da aplicação Stayaway, seja em que contexto for, suscita graves questões relativas à privacidade dos cidadãos, retirando-lhes a possibilidade de escolher, se assim entenderem, não ceder o controlo da sua localização e dos seus movimentos a terceiros, sejam estes empresas multinacionais fora da jurisdição nacional, seja o Estado”, explica numa resposta enviada ao SAPO TEK.

A entidade responsável pela proteção de dados lembra que “pugnou desde sempre pelo carácter voluntário da aplicação de rastreamento de proximidade (contact tracing), quer na Deliberação/2020/277 (pontos 29-35), relativa à avaliação de impacto da Stayaway Covid, quer no Parecer/2020/82 no âmbito do procedimento legislativo do Decreto-Lei n.º 52/2020, de 11 de agosto, o qual prevê no seu artigo 1.º, n.º 2, o carácter voluntário da aplicação”.

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Para além das questões de privacidade, levantam-se também questões éticas. “A obrigatoriedade de uso desta aplicação desencadeia igualmente fortes reservas no plano ético, por acentuar em particular a discriminação de cidadãos, pois a maioria das pessoas não consegue ter acesso a este tipo de aplicação, como já foi afirmado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)”, recordando, a propósito, que esta aplicação apenas funciona em modelos muito avançados de alguns telefones inteligentes.

Em resposta ao SAPO TEK, a CNPD considera que “a aplicação de uma legislação desta natureza dificilmente será exequível” e sublinha que “de acordo com um relatório apresentado esta semana pelo Conselho da Europa, nenhum país, de um total de 55 países aderentes à Convenção de Proteção de Dados (Convenção 108), implementou com carácter obrigatório este tipo de aplicação”.

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A Associação D3 – Direitos Defesa dos Direitos Digitais, afirmou também ao SAPO TEK desconhecer casos paralelos na Europa. “Esta medida faz sim lembrar Estados autoritários, como a China”, e diz que “no dia em que a Assembleia da República passar uma lei que torne a utilização da app Stayaway Covid obrigatória, essa lei terá à sua espera uma providência cautelar da D3, por violação dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Portuguesa”.

Em comunicado enviado às redações mas tarde, a associação D3 é mais clara a defender que “apps obrigatórias não pertencem a uma Europa democrática”.

“A obrigação de instalação de uma app, qualquer que seja, é uma intrusão inédita e anti-democrática, digna do autoritarismo chinês e não do modelo europeu de sociedade. Tal obrigatoriedade, a acontecer, estaria em explícita contradição com as recomendações da Autoridade Europeia de Proteção de Dados, com as recomendação da Comissão Europeia, e ainda com as recomendações do Conselho da Europa, no que toca a este tipo de apps”, pode ler-se no documento.

Ricardo Lafuente, vice-presidente da D3, lembra que os cidadãos devem ser livres de instalarem o que entenderem nos seus equipamentos e destaca ainda que “o código-fonte do software utilizado não está publicado na totalidade, pois falta a componente fundamental relativa à parte que é controlada por Google e Apple e cujo funcionamento não conhecemos, é mais que legítimo questionarmo-nos sobre se queremos ou não instalar esta app”, avisa.

Aprovação difícil no Parlamento

Por ser matéria do âmbito da Assembleia da República, a aprovação das medidas tem de ser aprovada no Parlamento, e tudo indica que dificilmente vai passar com uma votação positiva. A agência Lusa contactou vários partidos com assento parlamentar que se mostraram contra a proposta, e várias reações têm sido reunidas por diferentes meios de comunicação nas últimas horas.

O ECO refere que o Bloco de Esquerda considera a iniciativa “inaceitável”, o CDS que tem “reservas de fundo” e a Iniciativa Liberal que se coloca “frontalmente contra” a iniciativa. O PAN tem uma posição também frontalmente contra, referindo a duvidosa constitucionalidade, e o Chega foca-se mais no uso da máscara que considera que vai criar sentimento de saturação, mas também discorda do uso da app obrigatória.

Já o PS diz que quer ouvir especialistas e que não tem uma inclinação. “Estamos no tempo de a política se afirmar na ciência“, disse a líder parlamentar do Partido Socialista, em declarações transmitidas pela SIC Notícias.

O JN cita hoje o líder do Grupo Parlamentar do PSD, Adão Silva, que admitiu que a proposta do Governo para o uso obrigatório da aplicação é controverso, remetendo para hoje uma posição oficial. Já havia quem fizesse contas para saber se o principal partido da oposição poderia viabilizar a Proposta de Lei do Governo, mas Rui Rio veio esclarecer que a proposta não tem condições para ser aprovada.

Com este nível de contestação fica em causa a aprovação da proposta de Lei. Mas mesmo que passe no Parlamento o presidente Marcelo Rebelo de Sousa já afirmou que vai enviar o diploma para o Tribunal Constitucional. ““Prefiro mil vezes pedir ao Tribunal Constitucional que esclareça rapidamente a situação do que avançar com uma decisão que vai arrastar uma polémica que depois poderá ter diferentes respostas a nível administrativo ou judicial”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa, à margem do Leilão Solidário online.