Escolas abertas, livros nas mochilas e períodos de convívio fora dos ecrãs era a realidade habitual na educação, antes da pandemia chegar a Portugal. No entanto, a COVID-19 veio trocar as voltas ao Governo, aos professores, alunos e pais, com a aposta no ensino à distância a 100% a ser a escolha necessária. Cerca de quatro meses depois, o SAPO TeK conversou com três especialistas na área para tentar perceber o balanço que fazem da estratégia que foi implementada e as perspectivas para o futuro. Apesar das enormes dificuldades sentidas, é claro o consenso de que o balanço não é negativo.
A 13 de março o Governo anunciou que a partir do dia 16 desse mês todas as escolas portuguesas iam encerrar, como resposta à crise de saúde pública que está a marcar o ano. Para o Presidente da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), Mário Nogueira, esta situação foi logo o primeiro ponto que não jogou a favor destes profissionais. Um dos principais problemas neste contexto foi a “forma abrupta como as coisas aconteceram”, conta ao SAPO TeK.
Poucos dias depois, a 23 de março, o Ministério da Educação (ME) anunciou uma nova equipa para ajudar as escolas no ensino à distância, deixando claro que considerava ser "imperativa a adaptação do processo de ensino e aprendizagem". Desde então, as escolas tiveram ao seu dispor a equipa "Estamos on com as escolas", uma “brigada” de apoio composta por mais de 100 profissionais, dedicados a apoiar professores e diretores no processo de transição. Outra das estratégias do Governo foi o lançamento da iniciativa #EstudoEmCasa, em abril, com um modelo de telescola para alunos até ao 9.º ano de escolaridade.
Qual é então o balanço feito e as perspectivas para o futuro da educação em Portugal? Para analisar a questão, o SAPO TeK conversou com Mário Nogueira e Adelino Sousa, diretor executivo de um evento internacional sobre o ensino, o Educa Virtual. Também a Presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Emília Santos, comentou os últimos quatro meses de ensino em Portugal, deixando claro que “ainda é um pouco cedo para se fazer um balanço”.
Desafios do ensino a distância: desde a falta de formação dos professores ao défice de equipamentos
Numa altura em que um questionário a professores, realizado pela Fenprof, revela que os docentes consideram que o ensino a distância veio aumentar as desigualdades e conduziu a um cansaço extremo, Mário Nogueira afirma que “os professores, de uma forma geral, não tinham formação para o trabalho em ambiente digital”. “Usavam algumas plataformas, mas sobretudo para passar algum documentário”, dá como exemplo, garantindo que as situações eram “completamente residuais”. Também o ensino a distância era muito excepcional, sendo uma aposta para situações específicas, como em casos de alunos internados em hospitais.
O Presidente da Fenprof admite que em alguns casos, e através dos centros de formação, as escolas organizaram-se rapidamente na interrupção letiva da Páscoa, com algumas formações focadas em noções básicas do meio digital, com recursos às plataformas que viriam, posteriormente, a utilizar nas aulas. Para isso, recorreram aos próprios professores da disciplina de tecnologias de informação e comunicação (TIC) ou a colegas com mais conhecimento. “Mas na maior parte dos casos foram procurar informações de forma autodidata”, refere.
A verdade é que também a realidade internacional parece ser que os professores não estavam preparados para o ensino a distância. Adelino Sousa reconhece isso mesmo no caso português, afirmando que não houve uma grande aposta na formação. No entanto, considera que na maior parte dos casos não eram necessários cursos. “Numa fase inicial, o que aconteceu foi que os professores foram levados a utilizar as ferramentas tecnológicas e aí a adoção é relativamente simples”, afirma. “Não é preciso um curso para utilizar o Teams”, explica, por exemplo.
Ainda no que diz respeito a esta questão, a Presidente do CNE considera que a pandemia de COVID-19 levou a uma “formação acelerada”, tanto por parte dos alunos como dos professores. Mas, no caso dos docentes, muito pela sua procura. No entanto, deixa claro que, na sua opinião, o ensino a distância não requer apenas formação tecnológica, implica uma adaptação dos métodos e conteúdos e essa, comenta, “talvez não tenha havido”.
Com o Governo a anunciar recentemente que vai reservar 400 milhões de euros para o acesso universal a equipamentos e à Internet e que vai dar computadores a 300 mil alunos no próximo ano letivo, a questão da falta de equipamentos foi bastante discutida ao longo dos últimos meses, quer para alunos como para docentes. “Faltaram equipamentos e os professores também não se queixaram”, comenta Mário Nogueira, garantindo que em muitos casos os professores tiveram de recorrer aos computadores pessoais ou até mesmo de comprar equipamento e de reforçar o serviço da Internet. Neste caso, a Fenprof garante estar a exigir ao Governo “que estes equipamentos mesmo que não sejam pagos aos professores, pelo menos sejam considerados de alguma forma em sede de IRS”.
Neste contexto, o diretor executivo do Virtual Educa garante que é de “tirar o chapéu” aos professores, pelos seus esforços, afirmando que devem ser considerados uns dos trabalhadores essenciais. Para além disso, elogia também o papel dos pais, que foram segundos professores e noutros casos “viraram” mesmo docentes. “Tiveram que ajudar os filhos mais do que nunca”, afirma.
Adelino Sousa reconhece que, no caso dos estudantes, esta situação é um problema grave e isto sendo “politicamente correto”, garante. Ainda assim, considera que é “realmente algo fácil de resolver” com dinheiro e equipamentos dados aos alunos. Para o especialista, uma questão ainda mais grave tem sido a exclusão de alunos, que se verifica já há alguns anos, quando estes não são inseridos em escolas. “Colocar os jovens ciganos a estudar: há anos que estamos a tentar resolver isto”, exemplifica.
“A falta de equipamentos é realmente algo fácil de se resolver”, garante Adelino Sousa
Embora considere que é necessário haver uma aposta nos dispositivos, a Presidente do CNE alerta que o “equipamento tem de estar ao serviço do governo e não ao contrário”. Neste contexto, surge também a questão do agravamento das desigualdades sociais. Maria Emília Santos refere-se não só à falta de equipamentos como computadores, tablets ou smartphones, mas também de conectividade. “Alguns alunos nunca mais chegaram a ser contactados”, garante, na situação mais extrema. Por outro lado, o Presidente da Fenprof destaca ainda a questão da autonomia dos alunos, da pouca literacia digital de muitas crianças e dos próprios pais, e dos alunos com necessidades educativas especiais.
“Claro que as diferenças sociais já existiam, mas o ensino a distância veio torná-las mais evidentes e agravá-las”, considera Maria Emília Santos, Presidente do Conselho Nacional de Educação
Método de avaliação foi uma das principais queixas dos professores
Para a Presidente do CNE, os professores apresentaram dificuldades em relação ao método de avaliação no ensino a distância e com razão. No caso dos ensinos básico e secundário, a “base devia ser a nota que o aluno tinha no ensino presencial e este período de ensino a distância deveria contar, apenas positiva e não negativamente”, explica. No entanto, a verdade é que não contou de forma positiva em muitas escolas, com os professores a atribuírem simplesmente as notas do 2º período. Este tipo de decisão é, na sua opinião, desvalorizar o trabalho dos alunos, mesmo reconhecendo que “os estudantes trabalham para aprender e não para serem avaliadas”.
Mário Nogueira, referindo-se aos alunos do secundário com exames nacionais em particular, e que desde 18 de maio tiveram aulas presenciais, garante que há relatos de professores que assistiram a dificuldades de aprendizagem relativamente à matéria dada durante o ensino a distância. Isto mesmo no caso dos alunos que, tipicamente, conseguiam acompanhar bem as aulas.
“No ensino a distância a avaliação foi muito difícil de se fazer, mesmo no ensino universitário”, garante Mário Nogueira, Presidente da Fenprof
Autonomia: uma palavra chave no ensino a distância
Tal como explica Adelino Sousa, o ensino a distância “parte de uma premissa básica”: a autonomia, “que não se conquista de um dia para o outro”. Por isso, dá o exemplo de crianças do 9º ano de escolaridade, que garantem não estarem preparadas para estas metodologia, precisamente por esta competência não ter sido estimulada. Por isso, considera ser crítico dar autonomia aos estudantes e níveis de liberdade diferentes.
“Genericamente, penso que o ensino a distância funcionou melhor com os alunos mais velhos do que com os mais novos”, considera a Presidente do CNE. No entanto, na opinião da especialista, e de uma forma geral, os professores tiveram a preocupação de tornar os seus alunos, independentemente da idade, mais autónomos na sua aprendizagem.
O futuro do ensino em Portugal: uma realidade que nunca mais vai ser a mesma?
A opinião quanto aos dois ensinos, o presencial e a distância, é clara: não são “inimigos”, mas sim complementares. Passados quatro meses de uma realidade totalmente diferente para o setor da educação, Mário Nogueira não faz um balanço negativo, mas considera que “para um trabalho acrescido os resultados ficaram aquém do que se pretendia”.
O Presidente da Fenprof deixa, no entanto, claro que o “ensino a distância parcialmente ou a 100% não é uma boa solução”. “Se a escola fosse apenas para transmitir conhecimento, mesmo assim era discutível… Mas a escola é mais do que isso, já que o lado do ensino passa pela relação do professor com o aluno, a socialização”, comenta. Por isso, e caso a situação não se agrave, considera que é possível a realização do ensino presencial a 100%, desde que o ME conceda as condições necessárias para que isso aconteça.
“O ensino a distância é sempre um ensino de emergência”, refere Mário Nogueira
Fazendo um balanço “espetacular” destes últimos meses, Adelino Sousa reconhece que as pessoas são seres sociais, mas lembra que “o contexto social tem mudado ao longo dos anos”. Por isso, considera que a socialização vai muito para além do contacto físico, fazendo também referência às várias plataformas disponíveis para o fazer à distância.
Já a Presidente da CNE considera que “obviamente que o ensino deve ser presencial e só no caso de emergência deveremos recorrer ao ensino totalmente a distância”. No futuro, a especialista afirma que o mais desejável é que as tecnologias sejam utilizadas ao serviço da aprendizagem dos alunos em situação de sala de aula. Maria Emília Santos acrescenta ainda que o Ministério deveria ter a sua própria plataforma, para alunos, pais e professores comunicarem entre si. Isto sem esquecer as outras alternativas ao seu dispor.
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